Fogueira do desencanto

A conquista do sucesso, identificado como felicidade, inclui a terrível dinâmica da eliminação do outro
Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Fogueira do desencanto! Parece ser alusão ao linguajar de rituais religiosos que usam das estratégias próprias do mercado para vender produtos e atrair os clientes. Na verdade, é uma expressão do linguajar de especialistas que, em campos próprios do saber, buscam explicitar o que está se passando no coração humano e no coração da cultura contemporânea. Aliás, as análises da cultura contemporânea tendem a abordar, quase exclusivamente, os aspectos e perspectivas que mostram as conseqüências desastrosas dos desdobramentos sociais, econômicos e políticos. A pátria, por exemplo, tem coração. O coração da pátria é sua cultura. Esta cultura ultrapassa as significações e alcances de tudo o que diz respeito aos números de composição de sua natureza e de suas reservas. A cultura como coração da pátria define os rumos e as dinâmicas de organização de um povo e seus hábitos no tratamento de suas coisas, podendo progredir, regredir ou causar desastres ecológicos e humanos, sociais e políticos de alta monta.

É incontestável, pois, que é preciso noticiar, propagar e pôr sobre a mesa, em discussão, também o que diz respeito à cultura como coração da pátria e, por conseqüência, o coração dos cidadãos e cidadãs que configuram a pátria. Aqui, neste âmbito de análise, o coração dos cidadãos, coração da pátria, se localiza bem, sem nenhuma prévia conotação de ordem religiosa, o que significa fogueira do desencanto. Trata-se da configuração cultural contemporânea. A cultura contemporânea vive o frenesi de um clamor gritante que no coração humano ressoa como imperativo de que todos devem gozar, sempre e intensamente. Os especialistas que estudam este grave fenômeno advertem que a dinâmica desta compreensão da vida como gozo é tão forte e hegemônica que esta busca deve ser atingida, está aí o comando forte, não importa como. Este não importa como está alimentado pelo discurso capitalista pós-moderno. Todo prazer possível deve ser alcançado e não deve ser interditado.

Neste horizonte, se constata a força alucinatória da satisfação gerando estranhezas, vertentes paradoxais, o horror da morte, a necessidade de organizar a vida sem limites para poder alcançar, a tempo e a hora, o que se quer e do jeito que se deseja. O desejo se torna tirânico. Esta tirania do desejo alimenta a depressão e a angústia dos corações, instâncias insubstituíveis para a presidência da vida com sentido de cidadania e dignidade. Este quadro tem complicações em se considerando o empobrecimento das razões que sustentam a esperança e norteiam os caminhos a serem percorridos. É óbvio que uma cultura configurada assim não se sustentará, esvaziando razões políticas, filosóficas, éticas e religiosas para edificar compreensão e vivência com nobreza e profundo sentido social. É incontestável, portanto, que as razões que dão sentido são aquelas do mercado, atiçando o desejo para vôos alucinatórios. As dinâmicas da cultura do individualismo competitivo passam a presidir projetos de vida, sentimentos, as relações entre as pessoas e os entendimentos a respeito de responsabilidade social e participação política.

Ora, o indivíduo é levado pelo desejo desenfreado da felicidade. A felicidade é entendida sempre como sucesso. A conquista do sucesso, identificado como felicidade, inclui a terrível dinâmica da eliminação do outro. É a eliminação moral, física ou profissional. Curiosamente, esta dinâmica, no entanto, não traz a saciedade desta felicidade procurada a todo custo. Não traz porque o discurso é estéril e inconsistente para sustentar o desabrochar de uma alegria duradoura e a conquista de um prazer que não seja fracassado. O resultado de tudo isso é uma cultura marcada pela angústia e pela depressão camufladas em promessas ou projetos de muita fachada; em busca desarvorada pela garantia de uma auto-imagem intocável e de comodidades garantidas. Há, pois, neste quadro de complexidades um comprometimento da existência como substrato de uma cultura cidadã e nobre.

Aí está a fogueira do desencanto incomodando muita gente e sendo encoberta por muitas coisas que só têm fachada, mesmo quando contabilizam números que impressionam e configuram cenários que comprovam avanços. Os especialistas destas análises apontam que esta cratera deste amplo vazio deve ser enfrentada, para sua superação, dando suporte à cidadania que a pátria precisa ter, com uma consistente dimensão política, estética, filosófica, ética e religiosa. Particularmente, estas dimensões, ética e religiosa, têm, na proposta da fé cristã, uma resposta garantidamente fecunda. Na contramão do alucinatório desejo que reacende a fogueira do desencanto, está a indicação da experiência de ser discípulo. O outro é o Mestre, Jesus Cristo, dando uma nova dimensão à vida, pela experiência de encontro com Ele. Este encontro é um encantamento inigualável para fecundar a cultura da pátria.

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