por Cloves Geraldo*
Diluição é a melhor definição para se entender o mito Che Guevara (1928/1967), tematizado pelos diretores Douglas Duarte, brasileiro, e Adriana Mariño, colombiana, em seu documentário “Personal Che”. Morto há 40 anos, em 08 de outubro de 1967, o médico argentino, um dos líderes da Revolução Cubana, ao lado de Fidel Castro, transformou-se de ideólogo, pensador e revolucionário em ícone pop, com toda a controvérsia que isto significa. O que implica em retirar deste mito seu significado simbólico e emblemático, no caso de Che Guevara, político-ideológico, destituindo-o de todo o seu vigor revolucionário, e transformar sua persona num ícone, dotado de valor de mercado. Sua imagem passa, então, a ser utilizada como adorno, adereço fashion, invólucro publicitário, sem que este uso traga embutido em si qualquer compromisso com as idéias ou ações do apropriado. Sua imagem, assim, não causa frisson, controvérsia, pois quem usa uma camiseta, boné ou broche seu pode não ter a mínima idéia de quem ele foi ou quanta polêmica causou nos ebulitivos anos 60.
Esta diluição não se restringe apenas aos citados ícones, se presta também às apropriações desbaratadas de neonazistas, de movimentos direitistas, travestidos de neo-marxistas, de peças teatrais, que tentam fazer uma ponte entre suas idéias e as de Mahatma Gandhi (1869/1948), e supremo sacrilégio; transformar seu martírio em corrente religiosa, na Bolívia, onde foi executado pela CIA, o serviço secreto estadunidense, com ajuda do Exército boliviano. Duarte e Mariño não se furtam em mostrar como isto se dá, indagando as razões de como isto se deu, em entrevistas diretas com os envolvidos. Num dado momento a boliviana, devota de Che, vai à igreja ofertar-lhe flores e tenta, com fervor, acender uma vela em penitência. Noutra seqüência, outra boliviana relata o milagre que se deu com ela. Cada uma delas tem uma história para contar, tornando Che um santo a quem se deve oferecer uma prece.
Adeptos comparam Che a Jesus Cristo
Ainda que os diretores tentem contornar a polêmica, com depoimentos de professores e pessoas que não vêm nenhuma ligação entre Che e religião, não são poucos que o ligam a Jesus Cristo. Uma demonstração de que, por mais equivocada que seja a mutação de Che em mártir, e daí num santo, suas idéias se entranharam no seio do povo boliviano. Este, na falta de um forte movimento político que os tire do atraso, da penúria e da falta de perspectivas, se vale de sua luta para entronizá-lo no panteão das divindades. Fato que perdura mesmo nestes tempos de Evo Morales e suas dificuldades para mudar seu país e torná-lo cada vez mais independente. Uma questão de independência nacional que os jovens neonazistas identificam com a luta empreendida por Che quando da Revolução Cubana, depois no Congo, com Patrice Lumumba (1925/1961), e por último na Bolívia. E, na visão equivocada deles, tanto Che quanto Hitler era nacionalista. E percorrem as ruas de Berlim enfiados em camisetas com a face do líder cubano estampada, diante de jovens de esquerda que protestam contra sua presença.
Não menos desbarata é a apropriação que o parlamentar chinês, de Hong Kong, faz de Che. Usa sua camiseta para identificar o líder revolucionário com a oposição que faz ao governo chinês continental. E não se importa muito com o uso que os jovens chineses fazem dos mesmos ícones que ele. Confunde sem dúvida aqueles que buscam uma via adversa à que ele defende. Em dado momento do filme, os diretores Duarte e Mariño, também roteiristas e produtores, embaralham ainda mais a diluição do mito Che, com a entrada em cena dos latino-americanos. São eles que irão recolocá-lo nos devidos lugares. A começar pelo salvadorenho, Carlos, que tem verdadeira adoração por Che, sem que isto implique em envolvimento político-ideológico. Diferente do cubano, morador de Havana, tomado de admiração e encantamento pelas idéias (“A Guerra de Guerrilhas” e “O Socialismo e o Homem em Cuba”) e feitos do líder revolucionário. Mas não só ele; há nas escolas toda uma didática histórica sobre o papel que ele jogou na Revolução Cubana ao lado de Fidel Castro.
Mídia o transformou em ídolo pop
Destoante é a pressão exercida pelos cubanos anticastristas, radicados em Miami, Estados Unidos. Como não poderia deixar de ser, pintam-no de todas as cores, seguidas de xingamento e pregação anticomunista. É hilariante a cena em que eles discutem com Carlos e uma cubana intervém. Sobram impropérios para todos os lados. A razão, embora desencontrada, chega com as análises feitas pelos biógrafos de Che, o estadunidense Jon Lee Anderson e o mexicano Jorge G. Castañeda, o cientista político e franco-atirador Christopher Hitchens e o fotografo e marqueteiro da Benetton, Oliviero Toscanini. Cada um deles envereda pelo campo simbólico da transformação do revolucionário em grande mito, pop-star e ícone do Século 20. Nenhum deles, entretanto, discute a importância do revolucionário Che Guevara, ficam na superfície, como se estivessem avaliando uma estrela midiática, apenas.
Prestam-se a sustentar a tese da diluição feita pelos diretores Duarte e Mariño. E equilibram, desta forma, o propósito deles, diretores, de atestar com seqüências brilhantes, iguais às da impressão de camisetas e sua reprodução em série, ampliadas para dezenas delas, numa representação pop das telas de Andy Warhol. Che surge sem sua dimensão político-ideológica, isento de qualquer traço revolucionário. Ali ele é tão só o ídolo pop vendável em qualquer loja da moda ou banca de rua, estampado em roupas, gadgets, brincos, broches e bandeiras. Uma representação de que o sistema capitalista o absorveu enquanto produto e o expeliu enquanto líder comunista. E destuído deste traço pode circular pelo planeta. Ainda que em certo momento, Duarte e Mariño o mostre estendido numa espécie de masrmorra; os cabelos desgrenhados e os olhos vítrios, sua morte o transfigure. Principalmente quando o ex-agente da CIA conta como foi tramada sua execução, é que o filme deixa a análise do simbólico e entra na controvérsia histórica.
Jovens e trabalhadores devem recuperar suas idéias políticas
Mas é nos momentos de desencontros de informações, opiniões eivadas de emoção e de checagem de sua mutação em produto que seu mito é reforçado. Se o sistema capitalista temeu pelo que ele podia fazer enquanto líder revolucionário nos anos 60, e o executou, a tentativa agora de esvaziar o que restou de suas idéias é ainda mais emblemático. Oliviero Toscanini reforça esta crença ao dizer que Che viveu para se transformar numa foto; a que o grande fotógrafo cubano, Alberto Córdoba o eternizou com o semblante contraído, ao flagrá-lo na solenidade que reverenciava os 100 marinheiros mortos na sabotagem de um navio cubano, pela CIA, com o semblante contraído.
Uma opinião digna de quem adora controvérsia. Toscanini sabe do que está falando. Ele mesmo usou as campanhas da Benetton para chamar atenção de tragédias como a da AIDS, enquanto vendia as criações da multinacional fashion italiana. Aos herdeiros de Che, espalhados pelo mundo, cabe se apropriar desta sua mutação em superstar, dotá-lo de suas idéias revolucionárias e colocá-las a favor das reais transformações no planeta. Che é, em suma, o único mito dos anos 60 realmente planetário, o que ajuda a juventude e os trabalhadores nessa tarefa. O filme, no entanto, tenta equilibrar posições, ouvindo vários lados, às vezes com humor. Muitas vezes, os diretores-entrevistadores se contrapõem aos adeptos do Che/Santo, e estes os questionam, também. Sem se tornarem Michael Moore (“Sincko/Fahrenheit”), eles acabam por virar personagens, tirando o caráter de suposta isenção do cineasta. Resta no final, a impressão de que quanto mais controvérsia houver sobre o Che/homem/revolucionário, mais seu mito cresce e sua imagem se presta ao mercado de bens simbólicos, em completa contradição com o que ele pretendia.
“Personal Che” (“Personal Che”). Documentário. Colômbia/EUA/Brasil. 2007. 87 minutos. Direção/roteiro/produção/fotografia: Doulglas Duarte/Adriana Marino.
Trailer no Youtube
*Cloves Geraldo, Jornalista
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