A Bolívia também é negra. E tem um rei

RESISTÊNCIA Com apenas 35 mil pessoas, comunidade afro-boliviana reconhece seu próprio monarca e luta contra invisibilidade e discriminação

RESISTÊNCIA Com apenas 35 mil pessoas, comunidade afro-boliviana reconhece seu próprio monarca e luta contra invisibilidade e discriminação
Igor Ojeda
de Mururata (Bolívia)


JULIO NÃO é soberbo. Tampouco pomposo. Sua casa, um sobradinho, é simples. Até demais. Um tanto deteriorada: os cômodos no andar de cima, uma vendinha no de baixo. A roupa que veste é surrada, o boné, velho. Julio é fechado, seco, desconfiado. Lacônico. Seu trabalho? Agricultor. De sol a sol.
Mas, antes de tudo, Julio Pinedo é rei. Em plena Bolívia de quase dois séculos de história republicana. Seu reinado vale para todo o território nacional. Mas não para todos os bolivianos. Na verdade, Julio exerce poder sobre um povo esquecido, quase invisível, que soma pouco mais de 35 mil pessoas, 0,4% da população do país: os afro-bolivianos. Sim, a Bolívia também é negra.
E a Bolívia negra planta coca, cítricos, café. Habita, principalmente, a região dos Yungas, a cerca de três horas ao norte de La Paz. Zona quente, úmida, de vales profundos e vegetação densa. No meio do caminho entre os Andes e a Amazônia boliviana. A Bolívia negra é pobre. Não tem serviços como saúde, educação e saneamento. É rural, mas também urbana. E é na cidade onde sofre mais discriminação. Por isso, luta para ser reconhecida e respeitada. Como qualquer boliviano.

A “corte” chega à América
Os primeiros africanos que chegaram no país governado por Evo Morales foram levados a Potosí para trabalhar como escravos nas minas e na Casa da Moeda, como acunhadores. “E não deu certo”, explica o rei. “Morreu quase a metade. Porque eles eram acostumados com um clima cálido, e em Potosí é um pouco frio. Com o esforço no trabalho, não puderam agüentar.” Assim, foram vendidos para as haciendas – organização do latifúndio na América espanhola – localizadas na região subtropical dos Yungas.
Numa das levas de escravos, vinda do atual Congo Kinshasa, estava a família de Julio. “Foram buscados para trabalhar nas minas de Potosí. Depois os trouxeram para cá em Mururata, para as haciendas.
Os patrões os faziam cultivar sempre a coca”, conta. Só que, entre seus familiares que foram trazidos da África, havia um rei. “Estou herdando o título que era anterior ao meu avô. De muitos anos atrás. Cerca de 500 anos, mais ainda. Da época que os espanhóis invadiram a Bolívia. Então, na família, sempre houve um rei.”
No entanto, o último a exercer o cargo antes de Julio havia sido seu avô, Bonifacio Pinedo. “Quando ele faleceu, em 1954, não houve mais rei. E ficou assim, até 1992, quando veio um senhor, um dos netos do proprietário da hacienda em que Bonifacio trabalhava, e disse: ‘Olhe, seu Julio, seu avô foi rei, você tem que seguir com essa carreira, você tem que ser o rei, tem que exercer o cargo que era dele’. O homem o via como parte de uma linhagem nobre. Seu Julio aceitou, e o coroaram em seguida”, lembra Angélica Larrea de Pinedo, a esposa real.

Pobreza
Julio exerce sua realeza na pequena comunidade de Mururata, onde nasceu, há 66 anos. Chegando ao povoado, após cerca de meio hora de táxi de Coroico, a “capital” dos Yungas, percebe-se logo sua precariedade. Uma única rua de terra, casas bastante humildes, uma escola simples, uma praça malcuidada, uma pequena igreja. Não há hospital ou posto de saúde. A população que caminha para lá e para cá é majoritariamente negra, mas percebe-se uma quantidade considerável de indígenas da etnia aimara.
Sentado numa calçada elevada, observando a movimentação, está Pedro Reyes Pinedo, um “quase primo do rei” (em uma comunidade tão pequena, quase todos seus habitantes parecem ter algum grau de parentesco). Chapéu preto na cabeça, sorriso no rosto, uma bengala segurada entre as pernas.
De aparência bastante idosa, Pedro não lembra sua idade: “já tenho vários anos”. Confirma seus 81 anos mostrando a carteira de identidade. Há cinco, ficou viúvo. Há três, foi operado da próstata, deixando-o impossibilitado de trabalhar. Seus três filhos já não moram em Mururata. “Sou sozinho. Como jogado fora.”

Servidão
Até os 78 anos, Pedro trabalhava na agricultura, assim como a maior parte dos afro-bolivianos. “Plantava coca, mexerica, laranja... O trabalho era muito duro. Tem que cavar, plantar. É muito sacrificante.” Hoje, vive apenas com os 200 bolivianos (cerca de R$ 70) que ganha mensalmente através da Renda Dignidade, uma bolsa concedida pelo governo Evo: “Não dá pra viver com isso”.
Durante boa parte da sua vida, Pedro sentiu na pele os resquícios da opressão colonialista, que perduram até hoje em alguns lugares da Bolívia. Antes da Revolução de 1952, Pedro trabalhava no sistema de pongueaje, como era chamado o regime de servidão imposto aos indígenas bolivianos. “Tinha que atender o patrão. Por uma semana, tinha que trabalhar na terra dele, ir na casa da hacienda”, lembra.
A vida difícil dos afro-bolivianos é contada, também, por Antonia Pinedo, outra prima do rei Julio. Aos 55 anos, essa dona de casa, promotora de saúde e catequista de Mururata recorda as histórias que seu avô lhe contava, como, por exemplo, a proibição de estudar que os brancos impunham aos negros que viviam nos Yungas.
“Um dia, meu vôzinho me disse: ‘filhinha, aprende a ler, não seja como nós que não sabíamos. Antigamente, os patrões não deixavam o negro aprender a ler. Fomos escravos, não conhecíamos médico... quando doía o molar, o arrancávamos com alicate. E, se estragávamos algo, nos batiam. Não havia sapato. Se a mulher paria seu bebê, tinha três dias de descanso. Se não pudesse trabalhar, era chicoteada. Você está agora na glória.”

“Pouco trabalho”
Sobre Julio, Antonia diz que ele é o eixo principal da comunidade negra: de toda a Bolívia, não apenas a de Mururata. “Todo afro o reconhece e aceita sua forma de ser”, referindo-se ao jeitão reservado. “Eu estou tentando abri-lo. Agora, pelo menos ele fala, responde. Eu conheço os tios do rei. Não falam, nem sequer riem. Sua família é muito seca. É diferente do resto da comunidade, que é aberta.”
Quando a reportagem chegou a Mururata, por volta das 8 horas da manhã, não pôde ser atendida pelo rei, mesmo após alguma insistência. O motivo não era nenhuma atividade “oficial”, algum problema a resolver em seu reino. A explicação era simples e, claro, seca: estava na hora do início da jornada de trabalho. Julio tinha que ir a seu pedaço de terra, onde cultiva folha de coca e alguns cítricos.
No fim da tarde, no novo horário marcado, após voltar da roça, o rei atende o Brasil de Fato. Sempre lacônico, se diz orgulhoso pelo título, por seguir os passos de seus antepassados. No entanto, minimiza sua importância. Segundo ele, os antecessores cumpriam mais funções e eram mais reverenciados.
“Para os primeiros afro-bolivianos, um rei era muita coisa, porque haviam vivido na África e já sabiam o que isso significava. Então, o respeitavam muito. Meu avô, durante os três anos que pude ver, resolvia os problemas da comunidade. Então, se era preciso castigar, castigava... fazia obedecer. Fazia cumprir. Agora não existe isso. Diminuiu o trabalho”, explica.

Resolução de problemas
Julio lembra que, hoje, a função real é dividida: nos povoados, há autoridades, sindicatos, corregedor, associação de vizinhos... “Então, é pouco trabalho para um rei. Pouco atendimento.”
No entanto, chama a atenção para o fato de que, ao contrário de, por exemplo, um corregedor, a máxima autoridade dos afro-bolivianos tem alcance nacional.
É sua esposa, Angélica, que conta com mais detalhes as atribuições reais: “É uma autoridade para qualquer ocasião.
Para ver o que está bom, o que está mal. Dizer que algo tem que ser assim ou de outro jeito. Tomar medidas drásticas. Por exemplo, se há uma briga, fazer os dois lados saberem que as coisas não podem ser assim. E eles respeitam”.
Sobre o futuro da dinastia Pinedo, nem Julio nem Angélica estão preocupados. Afinal, os dois têm um filho de 12 anos. “Acho que ele será o herdeiro da coroa”, prevê, quase envergonhado, o rei.

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