Sobre mercado matrimonial, diáspora negra e Michelle Obama



Diony Maria Oliveira Soares*

Ao realizar pesquisa(1) sobre o impacto do discurso estético midiático em jovens mulheres negras, estudantes do ensino médio em escola pública, escutei reclamações em relação ao mercado afetivo no Brasil. Segundo as estudantes entrevistadas, enquanto muitos jovens homens brancos não gostam de mulheres negras, muitos jovens homens negros “adoram uma loira”. Constatação que, obtida em 2007, ratifica queixa recitada por mulheres negras brasileiras já há bastante tempo.

A questão passou a ser reconhecida no meio acadêmico por intermédio do trabalho da demógrafa Elza Berquó(2) que, em 1987, analisou o mercado matrimonial, em investigação sobre a nupcialidade da população negra no Brasil. Neste estudo, Berquó apresentou a Pirâmide da Solidão, na qual demonstrou com números a solidão das mulheres negras.

Em 1995, o jornal Folha de S. Paulo realizou a pesquisa Racismo Cordial(3) que se transformou em um marco da mídia impressa na abordagem das relações étnico-raciais no Brasil. Para destacar algumas pessoas negras bem sucedidas, a divulgação do estudo apresentou apenas fotos e histórias de vida de homens negros, quase todos casados, na época, com mulheres brancas.

A desvantagem de mulheres negras no mercado matrimonial também foi abordada algumas vezes pela revista Raça Brasil, incluindo matéria publicada já no primeiro número da revista, em setembro de 1996, intitulada Casais Mistos – da cor do pecado, assinada por Ângela Oliveira. A matéria, que tratava de relacionamentos inter-raciais a partir de depoimentos de integrantes destes casais, afirmava em um dos subtítulos que Homens têm mais preconceitos, sintetizando que “nem sempre a alquimia dá certo. Principalmente na raça brasileira. Ora é o homem branco que mostra seu preconceito em relação às mulheres negras. Ora são os próprios homens negros que preferem as brancas”.

Dois anos depois, em outubro de 1998, o tema foi retomado pela Raça Brasil em matéria assinada por Tânia Regina Pinto, e intitulada Por que eles preferem as loiras?, na qual a reflexão de D. P., um administrador de empresas negro e bem-sucedido, dispensa comentários: “Se eu encontrasse uma negra na faculdade, será que eu me casaria com ela? Não. Minha esposa não tem curso superior, é baixa, gorda e tem barriga. Mas é branca.”

Nesta mesma época, Lilia Schwarcz(4) detectava que a mestiçagem resultava mais de casamentos entre mulheres brancas e homens pretos do que o contrário. Ou seja, o embranquecimento viabilizava-se mais acentuadamente a partir das escolhas dos homens negros.

Finda a primeira metade da primeira década do século XXI, a pesquisadora Maria Luiza Heilborn(5) divulgou, em 2006, investigação sobre mitos e comportamentos sexuais. O estudo resultou de dadosprovenientes de um inquérito domiciliar realizado emtrês cidades de distintas regiões do país, com jovens de ambos os sexos, de 18 a 24 anos. Na análise desta pesquisadora, “a preferência de homens negros por mulheres brancas, em casamentos inter-raciais, é reveladora de uma forma de ascensão social e de uma hierarquia, tanto de beleza como racial”.

Já em 2007, a cientista social Raquel Souzas e a socióloga Augusta Thereza de Alvarenga, em investigação(6) sobre as diferenças de gênero e de raça nas questões reprodutivas de mulheres negras e brancas, tendo em vista à concepção de liberdade, observaram que “no Brasil, mulheres negras são preteridas do mercado matrimonial, como aponta Berquó e supervalorizadas, como exóticas, para o tráfico sexual, como denunciam pensadoras do movimento negro”. Na opinião destas pesquisadoras, “a estereotipia a que as mulheres negras estão submetidas impede-as de usufruírem da liberdade, inclusive a sexual, e de exercitarem sua autonomia e dignidade, ferindo, portanto, os direitos sexuais das mulheres negras”.

A meu ver, o cruzamento entre estes e outros estudos sobre a desvantagem de mulheres negras no mercado matrimonial e os depoimentos concedidos em 2007 por adolescentes negras apontam que a condição étnico-racial pode dificultar a performance destas jovens nos jogos que levam aos arranjos afetivos. O que pode significar uma desvantagem em um jogo de cartas marcadas, no qual não adianta muito lançar mão de práticas que supostamente mantêm a auto-afirmação feminina por intermédio dos atrativos do corpo, tendo em vista acionar nos parceiros em potencial o arquétipo da musa. Ou seja, uma condição determinista que aponta que as relações étnico-raciais condicionam fortemente as escolhas afetivas, o que pode resultar para mulheres negras em poucas chances de negociação no que tange a essas escolhas.

Diante disso, tendo em vista a perspectiva de análise de componentes que contribuem para delinear características das relações de gênero na diáspora negra, Michelle Obama ingressa oficialmente na política mundial como um poderosíssimo emblema: uma mulher negra, 44 anos, crescida em um bairro pobre no Sul da cidade de Chicago; formada em Sociologia pela universidade de Princeton e em Direito por Harvard; casada com um homem negro bem-sucedido; mãe de duas meninas negras.

Durante a corrida eleitoral, a condição da esposa de Barack Obama chegou a suscitar questionamentos que escancaravam a perversidade do cruzamento do racismo com o sexismo: “há quem diga que será mais difícil para os americanos aceitar uma primeira-dama negra do que um presidente negro” alertava, por exemplo, matéria publicada por um dos maiores jornais do Brasil. Paralelamente a isso, reportagem de uma das principais revistas semanais do país informava que, antes da campanha, Michelle “fazia 200.000 dólares por ano como administradora de um centro médico” e previa que ela seria “uma primeira-dama inesquecível”.

Pois bem, no histórico discurso da vitória, Barack Obama conquistou para sempre o meu coração e, penso eu, os corações femininos da diáspora africana ao declarar ao mundo o seu amor pela esposa.

Sendo assim, às vésperas da posse, não é demais repetir: seja bem-vinda, Michelle Obama. Sim, nós podemos sonhar com príncipes encantados. Sim, nós podemos desejar o amor. Sim, nós podemos ser muitíssimo amadas.

* Mestra em Educação, especialista em Antropologia Social e jornalista.

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