No olho da rua


Luiz Neves da Silveira: No olho da rua

O Hip-Hop como expressão cultural


A história do surgimento do hip-hop no Brasil (e nos EUA) denotam seu caráter de cultura de resistência, ou seja, afirma a autenticidade de um movimento proveniente da periferia que, assim como o samba, aos pouco é legitimado pela mídia.



Batizados de DJ, rapper, break e grafite, esses são os elementos do hip-hop, uma manifestação de origem norte-americana que chegou ao Brasil no começo da década de 1980 e encontrou por aqui um terreno fértil para se desenvolver. Inicialmente despercebido pela maioria do público, o movimento caiu nas graças da juventude das periferias das grandes cidades, que virou tudo pelo avesso e criou uma expressão com cara e alma brasileiras.

A situação é considerada uma verdadeira heresia pelos puristas, defensores da idéia de que o hip-hop deve preservar o estilo difundido pelos americanos, apenas adequando-se à língua e à realidade social de cada país.

O rapper capixaba Renegrado Jorge, um dos mais antigos membros do movimento local, acredita que “se a gente deixa, daqui a um dia a capoeira vai se misturar também com o rock metal. Daqui a pouco vai se misturar congo com balé e a originalidade vai desaparecer”.

Mas os liberais relembram que a própria origem do movimento foi o cruzamento da arte urbana dos Estados Unidos com componentes da tradição cultural do Caribe, mais especificamente a dança de Porto Rico e o som da Jamaica, de onde vários artistas emigraram para Nova York nos anos 60. Além desse argumento, os que defendem a abertura destacam que no mundo globalizado, onde todas – ou quase todas – as culturas se entrelaçam, é natural que a expansão do hip-hop faça com que ele influencie e seja influenciado. Um dos que encaram a coisa assim é justamente um dos precursores do movimento no país, o dançarino Nelson Triunfo. “Muitos dos que se dizem radicais são na verdade pessoas limitadas que não percebem que a cultura do mundo todo já está fundida”.

“A cultura hip hop é uma cultura já mundial, a gente não poderia ficar de fora, e a gente tem um material humano legal, que é um povo criativo, a gente tem gente excluída e a gente tem uma cultura, uma industria cultural muito forte no Brasil, então eu acho que tinha que pegar.”


(Jorge Nascimento – professor do Departamento de Letras da UFES)

As culturas marginais, como o samba, surgem primeiro nas periferias, no ambiente das “fábricas”, onde pessoas cansadas do modo de vida sem perspectiva e das imposições da sociedade, no qual sua posição social já está marcada, vêem na manifestação cultural a fuga, um lugar onde elas podem ser elas mesmas.
Como sugere Armand Mattelart e Erik Neveu os sistemas de valores de uma cultura, ou seja, as representações que eles encerram levam a estimular processos de resistência. Para o professor de Literatura Brasileira da UFES Jorge Nascimento “o mais interessante é ver a garotada querendo rediscutir as verdades que são colocadas pela mídia”.

O discurso característico dos integrantes deste grupo trata-se, ao mesmo tempo, de uma declaração de independência, de intenção de mudança, de uma recusa ao anonimato e a um estatuto subordinado.

Embora o cunho de resistência ao sistema esteja impregnado, não há como negar a vontade de ascensão social de quem vive pela arte, mesmo que seja o hip-hop. “Pra viver bem de música, poder ter uma vida decente. Poder ter a sua casa legal, e tal. Sustentar a minha filha que eu tenho também, eu tô pra dizer que tá caminhando”, diz o rapper J3, pois viver de música é difícil.

Mesmo Renegrado Jorge sonha com a melhora de vida por meio do seu rap. “E eu vivo através do hip-hop, pago meu aluguel, sustendo meus filhos e sempre comprando uma parada diferente, sempre produzindo um som. E vou vivendo do hip-hop. Pra ver se um dia compro até um Opala melhor”.

Já DJ Gorinho, que desde os 13 anos toca para juntar dinheiro e comprar novos discos para sua coleção, ao indicar a agulha G-80 como boa e barata, diz não poder comprar uma de 400 reais. “Um dia será que eu vou poder comprar uma agulha de 400 reais? Quem sabe?”, indagou.

A vontade de viver melhor por meio de sua produção intelectual pode ser o fim da autenticidade, da resistência, se o conteúdo das letras do rap, por exemplo, perder o cunho contestador. Por outro lado, grupos como o Racionais MC’s vendem centenas de discos, mesmo estando fora do mainstream das grandes gravadoras multinacionais, assim, não se pode dizer que eles “venderam a alma” para o mercado. Na verdade, vão de encontro, segundo Micael Herschmann, “ao poder burocrático-empresarial sobre o indivíduo, sobre a sociedade e sobre o próprio Estado, o qual, por sua vez, vai se apoiar na promoção do crescimento econômico e do consumo, tomados como fins em si mesmos”.

As letras das músicas dos Racionais é um exemplo típico de literatura popular, na qual o povo é emissor e receptor da mensagem, mesmo sabendo que, em tempos da poderosa indústria cultural, o povo é quem compra CDs (mesmo que pirata). Mano Brown diz não se preocupar com a classe média: ''Eu me preocupo é com o favelado. Se você se preocupar com classe média, ou você vai começar a xingar muito, pra querer ofender, ou vai querer analisar, pra ver se os caras compram mais''. Na fala transparece a intenção de centrar a mensagem da vida suburbana aos manos. Há o projeto pedagógico de educar os irmãos, ou seja, realizar atividades culturais nas classes populares para que para eles mesmos comecem a se interrogar acerca das funções que assumem perante a dominação social.

E para falar de diferença temos que falar de identidade, conceito discutível em tempos de globalização. Ver grupos musicais fazerem sucesso fora do caminho dos “jabas” e da pasteurização nos é estranho, pois somos levados a supervalorizar a visão de uma produção cultural como resposta explícita as claras expectativas de classes ou de grupos de consumidores. Para um produtor ser produto neste tipo de raciocínio o objeto de ser moldado para ser facilmente vendido às massas. Um produto deve ser igual ao outro.

Transformar algo em produto consumível é deixá-lo atraente. O que vai vender mais: o disco de um “negão” com letras sobre desigualdade social ou Eminem, por exemplo, com um rap “engraçadinho”?

Os sujeitos envolvidos no assunto deste artigo são, antes de qualquer coisa, pessoas comuns. Claro ressalvando suas individualidades. Mas o que tratamos são suas perspectivas comuns acerca do seu objetivo de vida – ter sua arte reconhecida para, um dia, ter condições de vida melhor. É exatamente aí que os Estudos Culturais entram. A tal resistência nada mais é do que o rompimento de um de um regime, no qual é imposto um modo de consumo.

Os integrantes do hip-hop não querem comprar idéias prontas, idéias que não são as deles. Há a necessidade de produzir algo para o seu próprio consumo. É necessário colocar a cara a tapa sem a necessidade de obter sucesso. Mas a aceitação faz parte do objetivo de qualquer tipo de arte, mesmo que não declarado. O artista quer aplausos, quer reconhecimento. O grande problema, em relação aos Estudos Culturais, é que a legitimação da mídia destrói a originalidade.

O MC, o DJ, o B.Boy o Grafiteiro e os produtores, para ganharem a vida com o hip-hop devem deixar sua arte perder identidade e ganhar dinheiro, ou manter o discurso periférico e serem mandados para o olho da rua pelo patrão capital?

Quem são:
J3 – músico que enveredava pelo universo do rock’n’roll e resolveu fazer rap após morar nos EUA. Por mesclar eletrônica e rap, a qualidade de sua música é considerada desvirtuada por puristas do hip-hop.

Renegrado Jorge – De origem periférica, ele é um dos primeiros rappers de Vitória. Negativista em relação a mistura de ritmos no rap. Seu programa de rádio, Universo Hip-Hop, que vai ao ar domingo, das 18 às 21 horas, na rádio Universitária 104,7 FM, é o mais antigo do gênero na Grande Vitória.

Dj Gordinho – pratica o oficio de DJ desde os 13 anos. Hoje com 29 dorme no chão do seu quarto, pois os discos comprados durantes os anos ocupam todo o espaço do quarto. Já tocou em bandas como Salvação, Bomba Relógio e J3, além de discotecar em boates e festas de hip-hop.

Jorge Nascimento – professor de Literatura Brasileira do Departamento de Letras da UFES.

Bibliografia:
MAttelart, Armand; Neveu, Erik; Marcionilo; Marcos. “Introdução aos estudos culturais”. Parábola Editorial. São Paulo: 2004.

Rocha, Janaína; Domenich, Mirella; Casseano, Patrícia. “Hip Hop – A Pereféria Grita”. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo: 2001.

C., Toni (org.). “Hip Hop a lápis”. Editora Anita Garibaldi. São Paulo: 2006.

Herschmann, Micael. “O Funk e o Hip-Hop invadem a Cena”. Editora UFRJ. Rio de Janeiro: 2000.



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