O roubo de donativos destinados às vítimas das enchentes em Santa Catarina provocou indignação e também uma discussão sobre os reflexos da impunidade no país. O professor de ética e filosofia da Univesidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano disse que o comportamento de juízes, políticos e empresários que advogam em causa própria incentiva ações como as dos soldados e voluntários que roubaram alimentos e roupas doados a quem perdeu tudo o que tinha nas enchentes. “A gente fica horrorizado. Quando se vê um político dividindo sacos de dinheiro, de forma tranquila, começa-se a achar natural um voluntário separar daquele conjunto o que é melhor para ele. É necessário dar um basta a isso. Quando vamos romper esse ciclo? Quando se banaliza a corrupção se banaliza a culpa. O risco é de que se torne um comportamento epidêmico.” O historiador Marco Antônio Villa pergunta: “Para onde vamos”. Por sua vez, a presidente da Pastoral da Criança, Zilda Arns, diz ter ficado envergonhada com o que aconteceu em Santa Catarina. Para ela, quem rouba donativo não tem firmeza de caráter.
Uma das causas dos crimes e dos desvios de comportamento que castigam a sociedade brasileira é, sem dúvida, a certeza da impunidade. O criminoso sabe que a probabilidade de um longo período de reclusão só existe na letra morta da lei. O Brasil, como bem sabemos, não padece de anemia legal. O nosso drama é a falta de eficácia na aplicação da lei. A Itália, nação também latina e emocional, soube combater suas máfias com notável sucesso. E não falemos nos países anglo-saxões. Lá fora também existe corrupção, só que as autoridades colocam os ladrões na cadeia.
O que a sociedade assiste, em todos os níveis, a começar pelos patamares mais altos, é ao jogo do faz-de-conta e ao triunfo da mais obscena impunidade. O teatro das CPIs, a reeleição de inúmeros corruptos, a novela inacabada dos escândalos que se sucedem e tantas outras bofetadas na cidadania compõem o ambiente perfeito para a institucionalização do crime. A fibra moral da sociedade vai se desfazendo numa velocidade assustadora. Mas há, estou convencido, causas ideológicas mais profundas para o eclipse da ética e para a explosão das ações criminosas. O relativismo ético e a ausência de limites estão na raiz da patologia social.
De fato, quantas correntes ideológicas, quantos modismos intelectuais vivemos nas últimas décadas? A busca da verdade é frequentemente etiquetada como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor da última novidade, aparece como a única atitude à altura dos tempos que correm. Vai-se constituindo a intolerância do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério apenas o próprio eu. Mas, como lembra Bento XVI do alto de sua inequívoca autoridade intelectual, “a renúncia à verdade não soluciona nada, mas ao contrário: conduz à ditadura da arbitrariedade”. O relativismo está, de fato, na origem do enfraquecimento da democracia e nas agressões cada vez mais brutais aos direitos humanos.
Há no cerne da crise uma profunda raiz ideológica. Na verdade, as bases racionais da modernidade foram minadas pelo relativismo. Rompeu-se, dramaticamente, o nexo de união entre vontade e razão. Dessa forma, as pessoas passaram, no seu comportamento prático, a confundir gosto com vontade, sem conseguir captar as profundas diferenças existentes entre ambos. Por isso, cada vez mais o gosto, o capricho, o prazer (incluindo as suas manifestações mórbidas e doentias) passaram a impor sua força cega. Um dos traços comportamentais que marcam a decomposição ética da sociedade é, efetivamente, o desaparecimento da noção da existência de relação entre causa e efeito. A responsabilidade, consequência direta e lógica dos atos humanos, simplesmente desapareceu. O fim justifica os meios. Sempre. Trata-se da consequência lógica do raciocínio construído de costas para a verdade e para a ética. O político não tem limites na busca do poder. O burocrata avança no dinheiro público. E o voluntário saqueia os mantimentos e furta os donativos destinados a minorar o drama de nossos compatriotas. É terrível, mas é assim. Sem uma profunda renovação moral da sociedade é arar no mar. |
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