"Avanços da ciência são alheios aos valores que regem o espírito humano.” Assim o escritor argentino Ernesto Sabato explicou por que abandonou a carreira de cientista. Ele denunciou os fetichistas do progresso de fazerem uma ciência amoral. “Sempre tive como preocupação o destino do ser humano, sua precária condição de carne e osso”, ressaltou. A imagem que podemos extrair dessa fala é de um pensador apavorado, tentando implorar à humanidade que mude o curso da história, o rumo equivocado que o mundo escolheu para trilhar. Isso nos leva a crer que seu objetivo é nos convencer de que, sem apostar na espiritualidade, sem abandonar o reinado da razão e do dinheiro, não há progresso. O avanço econômico não pode se divorciar do avanço humano. Enquanto a educação for concebida como técnica, a humanidade vai padecer. Lembramos Freud: “Felicidade é a realização adiada de um desejo pré-histórico. Por essa razão, a riqueza traz tão pouca felicidade. Só somos realmente felizes quando satisfazemos um desejo infantil”.
Como entender a dificuldade dos jovens em assimilar perdas e frustrações quando a menor contrariedade os atinge? Quando o namorado sequestra a namorada para dela extrair, arrancar a confissão de uma suposta traição usando de força e armas, desconfiamos da forma como estamos apresentando a vida a nossas crianças. A intolerância tem aumentado entre os jovens. Intolerância ao sofrimento, à capacidade de suportar a ausência do outro – perda de gratificação pulsional. Geralmente, o homem confunde virilidade com agressividade. Mitologicamente, ele se julga poderoso por portar o significante fálico (pênis), o que lhe confere a ilusão de completude. Contudo, se não for inserido na cultura, barrado em seus desejos, ele acaba por se julgar no direito de agredir e matar o outro que lhe nega algo. Ou se considerar dono do corpo do outro, demonstrando posse, machismo.
A sociedade permissiva estimula e incentiva atos insanos, aplaude e julga normal a vida sexual precoce. Quando os sonhos do progresso engendram monstros, o essencial da vida fica ausente. É quando convivemos com a representação da coisa como se fosse a coisa. Com isso, a vida se liquidifica, perde a consistência. É insuportável viver como ordem, sem transcender o cotidiano esburacado, fracassado. Onde encontrar uma novidade de espírito?
A vida do jovem moderno não é nada fácil. Ele tem que conviver com a falsa ideia de felicidade, como se todos estivessem desfrutando de um estado de euforia permanente. Essa tal felicidade é vaga, uma vez que devemos exigir mais da vida do que apenas querer ser feliz. Quando vivemos a lógica da felicidade perpétua, abolimos o sofrimento da condição humana. Esquecemos que ele é parte de nossa aventura existencial. “O sofrimento salva a existência”, diz Simone Weil.
CONSUMOConsumir se tornou sinônimo de felicidade. Aposta-se no consumo como ascese, promessa de plenitude. A lógica que engendra esse ideal é enganadora; do contrário, a busca cessaria. Como manter a crença na vida como aquisição, quando tudo se torna mercadoria? Perder a namorada é como perder dinheiro na bolsa de valores, é ficar deficitário. Se os jovens estão despreparados para sublimar, para pôr algo no lugar da falta, surge a violência. Como simbolizar a dor? A vida encarnada no sonho industrializado, pautado por excesso e desperdício, implica riscos.
A estética do consumo é brochante, desumana. Habitamos espaços que nos deprimem. Os shoppings são um tédio, todos iguais – banheiros com o mesmo cheiro, comidas com os mesmos sabores. De onde extrair felicidade quando tudo é planejado para bloquear o poder de argumentar, discordar e reivindicar? “Todo bom raciocínio ofende, ensinou Stendhal. O pensamento que interessa aos mercadores nos chega dissociado do eixo da vida, dos sentimentos e dos sonhos. Sonhadores? Como sonhar a dor que nos move?
A violência surge quando se esgota a capacidade de argumentar, quando as palavras perdem valor. Quando um jovem prefere agredir, quando ele substitui a capacidade de pensar e convencer pela inteligência, age como frouxo – escolheu o caminho mais fácil e covarde. Como desafiar o futuro morto? Como resistir ao feirão que propagandeia o fim da amizade, da sinceridade, da culpa e do remorso? É o fim da era freudiana, do homem que se atormentava pelo outro. Entramos na era do eu sozinho, gozo narcísico, uno, bailando distante da alteridade.
Onde os jovens poderão construir suas instâncias fálicas se os espaços de “fantasmatização” estão sendo reduzidos? Que vida é possível sem incentivo à criatividade, sem transcender a realidade? Como superar a condição moderna em que o exílio de si é marca maior? Como desafiar o desalento, a descrença na vida como devir? Neste mundo marcado pela fragmentação e pelo apagar da fantasia, a fuga por meio da morte assume a função de proteção da angústia – um basta ao sofrimento. Muitos jovens se sentem estrangeiros em meio a tanta modernidade, alienados nesta sociedade hostil e sem sentido. “Na natureza tudo vira alma”, lembra Sabato em Antes do fim – ensaios que desmascaram a frivolidade e os sorrisos hipócritas dos tempos que correm.
“Sinto-me suspenso sobre um abismo e vejo o chão se abrir como cratera sob os pés.” Essas são as palavras de um jovem ao descrever sua angústia. Sua queixa é permeada pela falta de convicção, total descrença nas propostas civilizatórias de nosso mundo. Como demovê-lo do desejo de abandonar tudo e partir para o outro lado da vida? Acredito que a modernidade precisa resgatar, pela via do belo, o sentido da existência. A poética deve ser convocada em todas as instâncias e espaços. Não seria o belo um campo de reflexão e cultura, lugar por excelência de um novo tempo, da nova política? Sem paixão, dificilmente recuperaremos o desejo de viver, lutar, amar e trabalhar. Como dar destino diferente à pulsão, longe das opções mortíferas?
NOEL & CARTOLAA razão moderna engessa a autoexpressão, contamina os trabalhos artísticos. Nela subjaz a lógica do custo/benefício – logo somos conduzidos pela expectativa de ganho financeiro. A boa arte nasceu de almas vadias perambulando pelos becos da vida. Nos morros e em gente como Noel Rosa e Cartola, que nada mais pedia senão o direito de rasgar o peito de madrugada e soltar o último poema em forma de samba. Todo poeta é um corajoso, aposta na força que vem de dentro.
“Sabemos que só se pode fazer grande arte em absoluta liberdade. O resto é submissão, arte convencional e, portanto, falsa. Sendo assim, não serve para o homem. Os sonhos são úteis porque são livres.” Eis o testemunho de Ernesto Sabato a Jorge Luis Borges no livro Borges/Sabato. No que toca à arte, eles nos ajudam a pensar sobre o papel da fama no mundo atual – como ela acaba por influenciar e entorpecer a liberdade.
Os sonhos são a matéria-prima das grandes obras, sem eles somos seres operacionais, executamos planos alheios. Como cobrar sanidade dos jovens se castramos seus impulsos criativos com o discurso da produtividade, da rentabilidade? Por que direcionamos tanto a vida em função do sucesso financeiro, se ele nunca garantiu o fim das crises econômicas e das guerras? Será que as crianças não preferem a companhia dos pais ao excesso de conforto material?
Psicopatas! Assim grande parte da mídia rotula os jovens envolvidos em crimes. Mais que o diagnóstico, importa debater o que os motiva a atuar com crueldade. Sanidade relacionada à capacidade de se reconhecer naquilo que se faz, em algo que diz do sujeito. A alegria de nos sentirmos reconhecidos remete a desejos de menino. Enlouquecedor é viver a vida que não é da gente. Cartola morreu pobre, mas são. Sua loucura foi não ter se rendido a apelos alheios. Os sonhos só servem se for para nos garantir liberdade.
•
Inez Lemos é psicanalista. E-mail: mils@gold.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário