Lindinalva Rodrigues Corrêa
linrocea@terra.com.br
A recente e polêmica decisão de um magistrado do Juizado Especial Criminal de Cuiabá-MT, que aplicou, segundo o próprio “por analogia”, as medidas de proteção da Lei Maria da Penha em favor de um homem que estaria sofrendo violência doméstica praticada por uma mulher, obriga-nos a algumas oportunas reflexões. Passemos então a elas:
Sobre a justificativa do juiz do juizado especial criminal que entendeu que os homens também fariam jus às normas protetoras elencadas na Lei Maria da Penha, em razão da constatação formal-constitucional simplista e idealizaria de que “todos são iguais perante a lei”, recorro novamente aos comentários de Streck, que ao ser perquirido acerca dos avanços femininos na sociedade brasileira, indagou: “de que mulher vocês estão falando, já que estamos em um país que pode ser dividido, por faixa de renda per capita, em Itália, Colômbia, Quênia e Somália... Nesse contexto, por certo estavam a falar da mulher ‘italiana’...! Mas, pergunto: e o que sobra para a ‘queniana’ ou a ‘somalis’ brasileiras? Ora, não existe ‘a mulher’. Existem ‘várias mulheres’....” [1]1
Segundo investigação feita pela ONG Human Rights Watch, em nosso país, concluiu-se que de cada 100 mulheres brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas. [2] Todas as pesquisas demonstram que o lar, o âmbito doméstico e familiar, na maioria dos casos, institui o local de risco para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Conforme Soares: “A ameaça do ponto de vista das mulheres, não vem de fora, quando se trata de agressão física. Está na casa, não na rua; é episódio inscrito em dinâmicas típicas da vida privada, o que evidentemente não lhe reduz a gravidade, antes a aprofunda”. [3]
Parece-nos claro que o ordenamento jurídico brasileiro não só permite ao Estado a promoção de políticas de ações afirmativas, como as impõe, a fim de que sejam alcançados os direitos fundamentais baseados no artigo 3º da Constituição Federal, pois na sua redação temos o emprego de verbos como “erradicar, construir, reduzir e promover”, devendo o ente público desenvolver um comportamento ativo, positivo e eficaz neste sentido.
De outra parte, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, analisado em conjunto com o art. 3º, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, estabelece que: o Estado garantirá a todos o direito à igualdade, sem ignorar as desigualdades existentes, que motivam, dentre outras medidas, a criação das normas de ação afirmativa, visando o alcance do ideal de igualdade efetivo idealizado pelo legislador constituinte ao descrevê-lo formalmente, sendo certo que o igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente. Constatando-se que não há igualdade de fato entre homens e mulheres, tratarem-se desiguais como se iguais fossem, é que constituiria a verdadeira inconstitucionalidade.
Ademais, a Lei Maria da Penha não criou um só tipo penal, que continuaram os mesmos que sempre foram, alcançando homens e mulheres indistintamente, sem fazer qualquer distinção, tanto para figurarem no pólo passivo como no ativo, quer quanto ao tipo penal ao qual se responderá, tal como em relação à pena prevista em lei para tais delitos e sem definir qualquer tipo penal que exigisse como sujeito passivo exclusivamente pessoa do sexo feminino, criou tão somente mero procedimento, com vista à peculiar e necessária proteção às maiores vítimas de violência doméstica e familiar, que incontestavelmente são AS MULHERES, fato que não se pode negar, já que para isso temos dados numéricos e em números até os operadores jurídicos mais resistentes crêem, posto que a violência praticada contra as mulheres, conhecida como violência de gênero, constitui na razão implícita do número estarrecedor de casos.
Portanto, ainda que inegáveis os avanços femininos rumo à igualdade real de gênero, é notório, conforme explicitado no tópico anterior, que as mulheres necessitam, e muito, da proteção especial oferecida hoje pela Lei Maria da Penha. Tão claro, tão simples, e uma enorme quantidade de operadores jurídicos a divergir, insistindo em negar às mulheres o direito de reagir à violência e à efetiva proteção Estatal de seus direitos humanos. A quem interessa manter as mulheres sob controle?
É inevitável a conclusão de que respeitadas as regras de conexão e continência, ante a própria causa da existência da Lei Maria da Penha, que indubitavelmente deva ser aplicada tão somente nos casos de violência doméstica e familiar praticados contra MULHER, pela razão pura e simples de que somente as mulheres são vítimas de violência de gênero, o que ocorre em número significativo, que por si só justifica a existência de uma lei especial que as protejam.
Evidentemente, não se nega que os homens podem ser vítimas de violência doméstica, tal como não se ignora que as mulheres são perfeitamente capazes de praticá-las. Contudo, é notório que a quantidade inexpressiva de tais casos comparados àqueles que vitimam mulheres, já que os homens, felizmente para eles, nunca sofreram a famigerada violência de gênero, jamais haveria de justificar a existência de uma lei especial de proteção como a Lei Maria da Penha em prol dos mesmos.
Ademais, como a inédita decisão teria concedido medidas de proteção a fim de impedir a mulher agressora de se aproximar ou manter contato com o homem agredido, sabe-se que não haveria qualquer necessidade de se aplicar a Lei Maria da Penha no caso em exame, porque a Lei dos Juizados Especiais Criminais, no artigo 69, parágrafo único, sem fazer qualquer distinção quanto ao sexo da vítima, é muito clara ao dispor que nos casos de violência doméstica e familiar, o juiz poderá determinar como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência da vítima e dentro deste contexto, também se poderia proibir a aproximação ou contato da autora do fato da residência ou local de trabalho do ofendido.
Portanto, tal decisão carece de amparo legal, além de acirrar ainda mais os ânimos dos litigantes nos casos em que os homens ostentam dificuldades de assumir suas responsabilidades nas agressões, ocasiões em que distorcem os fatos até encontrarem uma maneira de “justificar” para si e para terceiros suas atitudes violentas e abusivas, colocando na própria vítima a culpa e responsabilidade exclusiva pelas agressões por eles perpetradas, episódios em que os agressores encontrarão neste tipo de interpretação judicial extremamente expansiva, mais uma maneira de tumultuar o processo, alterando a situação real, o que, sem dúvidas, poderá servir de argumento para desestimular as mulheres vítimas de violência doméstica de procurarem ajuda, por medo de represálias, razão que torna a decisão ora repudiada bem mais perigosa do que à primeira vista possa parecer.
Concluo afirmando que ao continuarmos ignorando de forma ingênua ou autoritária as evidentes desigualdades do tratamento dispensado a homens e mulheres em todos os tempos e na atualidade, estaremos de forma expressa ou velada negando sem êxito a história de subjugação do feminino aos ditames masculinos e transformando gritantes diferenças culturais de gênero (masculino e feminino) em uma estereotipada e ridicularizada guerra entre sexos (homem e mulher), diante de um injustificado e “oculto” receio de que o “mundo masculino” esteja ameaçado pela “ditadura do feminino”, que alguns menos atentos vêem nos dispositivos da Lei Maria da Penha, avançaremos sem entender o sentido e a origem de tanta violência contra mulheres, sendo certo que deste modo também não conseguiremos combatê-la, numa contenda desgastante e inacabável em que, certamente, não haverá vencedores, já que um gênero carece indubitavelmente do outro, para a própria sobrevivência.
Referências
[1] Streck, op. Cit., 2004, p.118
[2] Human Rights Watch, abril de 1997. Injustiça Criminal x Violência contra a Mulher no Brasil. Número de catálogo, Library of Congress: 97-71949.
[3] SOARES, L.E.; SOARES, B.M & CARNEIRO, L.P., 1996. Violência contra a mulher: as DEAMs e os pactos domésticos. In: Violência e Política no Rio de Janeiro (Soares, L.E. orgs.), p. 66. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará / ISER.
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