CAIO ROSENTHAL e MÁRIO SCHEFFER
O Brasil ainda não se deu conta, enfim, da importância de uma política nacional de prevenção mais abrangente |
ESTIMA-SE que 630 mil pessoas vivam hoje com HIV e Aids no Brasil. Ainda que a relativa estabilização da epidemia e o aumento da sobrevida dos pacientes sejam motivo de comemoração governamental permanente, é preciso também assumir os fracassos da prevenção.
Dobrou em uma década a incidência entre homens e mulheres com mais de 50 anos. Aumentaram os registros de Aids entre a população escolarizada, com oito a 11 anos de estudo. Os homossexuais, sobretudo os mais novos, vivem o "rebote" da epidemia e engrossam as taxas de infecções recentes. As regiões Norte e Nordeste seguem tendência de aumento dos casos. Superlotados, presídios e cadeias continuam a ser campo fértil para a propagação da doença. E nunca deixaram de estar em condições de vulnerabilidade os profissionais do sexo, as mulheres pobres, os jovens que iniciam a vida sexual cada vez mais precocemente, as travestis e as transexuais, os usuários de drogas, os portadores de transtornos mentais, dentre outros estratos da população.
A distribuição dos medicamentos anti-retrovirais na rede pública de saúde tem importante papel no controle da epidemia. Para um programa que almeja ser um dos melhores do mundo, a baixa testagem anti-HIV na população revela falha grave na prevenção: 43% dos brasileiros com HIV chegam aos serviços de saúde já com imunidade debilitada ou sintomas clínicos da doença, perdendo com isso a oportunidade de se beneficiarem em plenitude do tratamento.
Após os frustrantes resultados das pesquisas de uma vacina contra a Aids, as atenções do mundo se voltaram novamente à prevenção. Edição recente da prestigiosa revista "The Lancet" traçou um panorama dos atuais modelos de prevenção do HIV, do qual se extraem lições que o Brasil pode muito bem incorporar.
Num primeiro momento da epidemia, a prevenção visou favorecer uma tomada de consciência sobre a Aids, mudar a imagem negativa da camisinha e combater a discriminação das pessoas infectadas. Numa etapa posterior, foi dirigida a públicos específicos e aos pontos críticos da vida sexual, como o primeiro encontro, novas relações, múltiplos parceiros, infidelidade conjugal.
O que falhou foi a tentativa de reduzir o sexo a um ato anti-séptico. O ser humano faz sexo para procriar, por prazer, por dinheiro ou quando é forçado a isso. A prevenção exige mudanças radicais, que respeitem as escolhas individuais, mas também os contextos nos quais as pessoas estão inseridas.
O uso permanente da camisinha é a pedra de toque da prevenção. Busca-se hoje aliá-lo a novas formas de prevenir a Aids -entre as quais estão os ainda polêmicos estudos sobre diminuição do risco com a circuncisão, os microbicidas e os medicamentos para profilaxia pré-exposição ao vírus. É evidente que essas possíveis novas práticas ensejarão mudanças de comportamento -o que tornará a prevenção tarefa ainda mais desafiadora. Talvez a maior ameaça à prevenção da Aids no Brasil seja o arrefecimento da aliança entre a sociedade civil, os profissionais de saúde, a mídia e o poder público. Essa rede solidária garante a circulação do conhecimento sobre a Aids, o que faz dela um tema de interesse geral e produz novas atitudes. Sem isso, é reduzido o efeito amplificador da comunicação preventiva dirigida à população.
Desmotivadas, sem novos voluntários -além de dependentes exclusivamente de dinheiro público-, as ONGs têm cada vez menos condições de assumir a terceirização da prevenção, um dos pilares da resposta brasileira à epidemia. Em decorrência da agonia desses aliados e devido à crescente concentração da Aids em grupos mais vulneráveis, a responsabilidade estatal na prevenção tornou-se muito maior.
O Brasil ainda não se deu conta, enfim, da importância de uma política nacional de prevenção mais abrangente -como o faz ao garantir o acesso universal ao tratamento anti-Aids.
O país já demonstrou, contudo, coragem política ao abordar temas-tabu nos campos da sexualidade, de gênero, do uso de drogas e da redução de riscos e danos. Tem tudo para incorporar nova atitude diante da epidemia atual. Os fracassos da prevenção pedem uma liderança firme baseada em decisões realistas e sustentadas.
CAIO ROSENTHAL, 59, médico infectologista, é membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
MÁRIO SCHEFFER, 42, comunicador social e sanitarista, é membro do Grupo Pela Vidda/SP e pós-doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
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