A arte que vem dos morros de Belo Horizonte não é apenas aquela tutelada por projetos de inclusão social. Tampouco algo que, até bem pouco tempo, chamava a atenção apenas por oferecer opção à falta de oportunidade de jovens às voltas com o crime. Os tempos são outros. A cultura da periferia ganhou discurso consistente, representantes de peso e, pouco a pouco, começa a romper barreiras históricas. A transformação é visível na dança, nas artes plásticas, no teatro e na produção audiovisual. Mas o exemplo mais forte vem da música, do trabalho de intérpretes e compositores como Renegado, a sambista Aline Calixto e de grupos como Meninas de Sinhá e Black Sonora, que conseguiram consolidar propostas estéticas criativas.
A última prova de fogo “batizou” o rapper Renegado, que acaba de vencer o maior festival de hip hop do país, o Hutúz, com a premiação do CD Do Oiapoque a Nova York e de seu site oficial. Nascido e criado na favela do Alto Vera Cruz, na Região Leste da capital, ele começou a cantar aos 11 anos, numa roda de capoeira. Conheceu o trabalho dos Racionais MCs e do DJ Thaíde aos 13, e, influenciado por eles, criou o Brother’s do Rap. O apelido de Flávio de Abreu surgiu quando ele ingressou na banda Anjos Negros. “Quem mora em comunidade é privado de quase tudo: saneamento básico, moradia, educação. Tive negadas e renegadas essas condições várias vezes. Não fui buscar o crime como resposta, mas a cultura e a arte. Renegado é uma sátira”, explica. Aos 26 anos, o cantor mora – e milita – no bairro de origem. Em 1997, com os amigos Dani Cris, Negro F e DJ Francis, criou o grupo que o projetou, o Negros da Unidade Consciente (NUC).
Renegado se distingue entre os rappers brasileiros não apenas pela história de superação. No CD solo de estréia – a convite do projeto Stereoteca –, ele surpreendeu. “Pensei em fazer uma fita diferente. O rap virou pop. Quis abrasileirar, e não nacionalizar o gênero, criando identidade para o meu som. Peguei ritmos como baião, black, maracatu e reggae, coloquei tudo na velocidade três do liqüidificador e cheguei às 13 canções.”
DIÁLOGO O rap é o fio condutor desse inspirado diálogo musical. “Assim, todas as tribos estão se encontrando nos meus shows”, orgulha-se o artista. “Eu tinha que andar contra o fluxo. Meu objetivo é o cara do barracão de lona do fundão da Zona Leste se interessar pelo meu disco, assim como o do Belvedere. Quero que todos se encontrem no meu show”, diz Renegado. Ele lança mão de letras politizadas, tratando poeticamente de problemas sociais. “Indiretamente, meu trabalho tem mostrado que há poder de escolha e que a cultura tem sido agente transformador no processo. Nossa missão é fazer com que essa possibilidade chegue a outras pessoas e ganhe proporção”, enfatiza.
O exemplo do jovem rapper é enaltecido por artistas de sua comunidade. Fundadora do grupo Meninas de Sinhá, a aposentada Valdete da Silva Coelho considera fundamental a vitória de Renegado, principalmente para a juventude. “A sociedade acha que na periferia só tem marginal. Estamos provando que ela é formada por marginalizados, mas também por muita cultura, solidariedade e alegria”, diz. Há 20 anos, Valdete resolveu convidar as mulheres que sofriam de depressão e de problemas familiares para conversar. “Comecei a perceber que elas não precisavam de antidepressivos, mas de alternativas para elevar a auto-estima”, conta. A solução veio da música. Há 12 anos, elas fundaram o Meninas de Sinhá.
Todas as semanas, o grupo formado por senhoras do Alto Vera Cruz passou a se reunir para recuperar antigas cantigas de roda. O trabalho gerou o disco Tá caindo fulô, que ganhou os prêmios TIM, Rival e Petrobras deste ano. “Nunca pensamos em concorrer a nada, em sucesso, nem em cantar fora de Minas. Mas deu certo. A entrega do prêmio TIM foi um sonho. Me senti uma rainha no meio dos artistas. A Ivete Sangalo e a Elba Ramalho nos procuraram e se ofereceram para participar do nosso primeiro DVD”, anuncia. Aos 70 anos, Valdete sente orgulho das 35 parceiras e do projeto. “Queremos trazer algo novo para o nosso bairro, mesmo com toda tristeza, dificuldades e violência”, diz.
A oportunidade mudou a vida da compositora oficial do Meninas de Sinhá, a aposentada Efigênia Romualda Lopes Teixeira, de 68 anos. Tímida, ela sentia enorme dificuldade de se expressar. “Tinha uma vida triste e o reencontro com Valdete me abriu essa possibilidade. O grupo transformou a vida de todas nós e a minha em especial. Já são umas 30 composições. Não crio por encomenda, mas inspirada pelas coisas incomuns a meu redor”. O reconhecimento é compensador. “Mesmo morando na periferia, somos respeitadas e estamos mais felizes, sem falar na auto-estima, que está lá em cima”, comemora Romualda.
DEMOCRACIA |
Meninas de Sinhá fizeram festa para comemorar o Prêmio TIM |
O produtor Gil Amâncio, que trabalha com alguns expoentes da cena artística da periferia de BH, chama a atenção para transformações da cena cultural da cidade: “Antes, só uma elite produzia. Hoje, vejo uma democratização que nos permite ouvir outras vozes. Há alguns anos, o discurso era de que rap não é música. Atualmente, Renegado é convidado para tocar com Toninho Horta e Lô Borges”.
O contato com os criadores “do asfalto”, segundo ele, tem aberto possibilidades importantes de diálogo. Mesmo com o reconhecimento da qualidade dos trabalhos, Gil percebe um abismo entre os dois mundos. “A turma da periferia foi excluída do processo de formação artística”, reclama. Apesar dos problemas, as trocas tendem a se ampliar. “Será melhor ainda quando os músicos do morro começarem a descer para os estúdios e passarem a ser protagonistas do processo”, diz. Pelo que se ouve pelos palcos de BH, o sonho de Gil Amâncio não está longe de virar realidade.
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