Poucos gestos significaram tanto no esporte. O protesto feito pelos norte-americanos Tommie Smith e John Carlos nos Jogos Olímpicos do México, em 1968, simbolizou a luta contra a segregação racial. Ainda que, como recorda 40 anos depois do ouro olímpico, ele tenha destruído algo mais que sua carreira.
No pódio histórico, Smith faz saudação dos Panteras Negras
Tommie Smith olha fixamente ao falar. Em seus olhos não há ódio. Mas sim uma mescla de tristeza e orgulho pelo que foi sua vida. Seu gesto no alto do pódio depois de ganhar o ouro nos 200 metros (19,83segundos) nos Jogos Olímpicos do México em 1968, com uma mão envolvida por uma luva negra em defesa da igualdade entre as raças, é um dos símbolos universais do esporte.
Aquela mão direita fechada (assim como a esquerda de John Carlos) representava a luta contra a segregação racial que sempre sofreu nos Estados Unidos. Era o black power (o poder negro) — a posição da saudação dos Panteras Negras, grupo que defendia os direitos de igualdade dos negros americanos nas décadas de 60 e 70.
A atitude, porém, rendeu a expulsão da dupla da delegação de atletismo americana. Também foi uma condenação para o resto de sua vida. Este texano de 64 anos, que na quarta-feira recebeu em Madri o primeiro prêmio dedicado aos valores universais do esporte do jornal As, ainda se emociona ao ver aquela imagem. É o que ele revela em entrevista ao diário espanhol El País. Confira.
O que o senhor se lembra da sua infância?
Sou o sétimo de 12 irmãos. Crescemos no campo. Meus pais eram sitiantes. Cultivávamos a terra de uns brancos no sítio deles e parte da colheita ficava para nós. Quando eu tinha seis anos, mudamos para a Califórnia e continuamos trabalhando no campo, mas já cobrando.
Lembro de uma boa ética de trabalho. Era uma vida muito religiosa. Íamos muito à missa. Os meninos brancos, é claro, zombavam de mim no colégio porque eu usava roupas de pobre.
Que tipo de marginalização sofriam?
Não podíamos fazer quase nada porque nos viam como pessoas de segunda categoria. Não podíamos andar na mesma calçada que os brancos. Se víssemos um branco, tínhamos que sair imediatamente da calçada. Também não podíamos compartilhar os mesmos serviços públicos. Havia banheiros para brancos, muito limpos, e para negros, mais sujos. Não havia igualdade em nenhum sentido.
O esporte era uma válvula de escape?
Era a única forma de diversão no colégio: correr, jogar beisebol... E se transformou em parte da minha vida. Eu não cresci aspirando ser um atleta olímpico. Mais tarde usei o esporte, a partir dos 15 anos, para nos fazer ouvir. Meus pais me disseram: ''Enquanto você ganhar corridas, não precisará trabalhar aos sábados''. Era fantástico para mim.
Comecei a ganhar e faltar ao trabalho. Claro que não tínhamos dinheiro nem para sapatos. Nós ganhávamos. Havia uma organização beneficente que nos dava roupas e sapatilhas. Eu não tinha nem agasalho, só uma calça curta e uma camiseta.
E assim o senhor se tornou, no México, o primeiro a fazer 200 metros em menos de 20 segundos, e seu recorde de 19,83 segundos se manteve durante 11 anos. Como o senhor se transformou em um dos melhores do mundo?
Com muito trabalho. Tinha a bênção de Deus para me dedicar ao atletismo: a estatura, o corpo, a velocidade. Fiquei forte assim, brigando com meus irmãos, trabalhando todas as horas no campo. Foi assim que pude me transformar em alguém. Não tínhamos nada, dessa forma não tive outra possibilidade na vida a não ser lutar. Não tinha nem sequer tempo para treinar. Eu não fui treinado como um atleta.
Minha preparação foi unicamente o trabalho no campo. Quando eu voltava para a escola no outono, os rapazes me perguntavam: “Como você é tão rápido? Fez musculação?”. Eu não entendia o que eles diziam. Eu só havia estado no campo. Usava umas botas muito pesadas e carregava todas as ferramentas, como pás, que pesavam muito. Até ir para o instituto não havia começado a trabalhar seriamente como atleta.
Ali o senhor uniu o esporte com a luta contra a segregação racial.
Vi tantas injustiças que não podia ficar sem fazer nada. Não fiz aquele gesto de 68 por moda, mas para transformar alguma coisa. Nós, atletas afro-americanos, organizamos o OPHR (Projeto Olímpico para os Direitos Humanos). Nossa idéia era boicotar os Jogos, mas não foi assim, e decidimos que cada um organizaria seu protesto como quisesse.
Minha vez chegou nos 200 metros. A corrida foi incrível. Eu me resguardei para a última reta, mas não tinha nem idéia do que poderia acontecer na cerimônia, como eu me sentiria no pódio, o que faria... Não soube até o último momento, até que John Carlos (bronze) me disse no túnel de saída.
Sua mulher já havia comprado umas luvas negras.
Sim, havia algo previsto, ainda que não soubéssemos muito bem o quê. Foi um gesto de um impacto mundial. Não era só o grito de dois negros pela cor de sua pele, mas fizemos isso pelos direitos da humanidade.
Vocês convenceram o australiano Peter Norman (prata) a usar o adesivo da OPHR.
Sim, mas eu não queria que um homem branco o usasse. O projeto era para todas as pessoas do mundo, negras ou brancas, e eu não queria que ninguém tivesse problemas por causa disso. A idéia de que Norman usasse o adesivo foi de John Carlos e ele também quis usá-lo sobre o escudo do comitê australiano.
Eu conhecia a história da Austrália sobre como eles haviam tratado os aborígenes. Sabia que isso podia ser um problema para ele porque seria interpretado como se ele estivesse do lado dos negros dos Estados Unidos. E foi isso que aconteceu. Assim como nós, ele foi expulso da Vila Olímpica, maltratado em seu país, segregado socialmente.
O senhor teve medo quando fechou e ergueu o punho?
Tive medo minha vida inteira. Não é uma coisa que se supera em dois ou três anos. Os jovens afro-americanos, ainda hoje, são alvo nos Estados Unidos, simples assim.
Nada mudou?
Claro que sim, muitas coisas. Nosso presidente-eleito, Barack Obama, é afro-americano. E isso não foi uma coisa que aconteceu em um dia. Lutamos por uma melhora e, como conseqüência dessa luta, agora há um presidente negro. Foi um processo muito lento. Isso não quer dizer que tudo vai bem. Mas, graças à forma que Obama pensa sobre a mudança social, a luta não terminou. Apenas acabou de começar.
Como sua vida mudou depois do gesto?
Tudo mudou para sempre. Recebemos ameaças de morte, cartas, telefonemas... Depois dos Jogos Olímpicos, todos os meus amigos desapareceram. Tinham medo de perder suas amizades brancas e seus empregos. Eu tinha 11 recordes mundiais, mais do que qualquer pessoa no mundo, e o único trabalho que encontrei foi lavando carros num estacionamento. E me mandaram embora porque meu chefe disse que não queria que ninguém trabalhasse comigo. Não queria que alguém que defendesse a igualdade de direitos estivesse em sua equipe.
Ninguém o ajudou?
Todo mundo tinha muito medo. Meus irmãos foram expulsos do colégio. Outros, que estavam na equipe de futebol da universidade, foram proibidos de competir por causa do que eu fiz.
Você chamou os membros do COI (Comitê Olímpico Internacional) de estúpidos. Ninguém lhe pediu desculpas?
Não, nunca. Em particular me dizem: ''Sinto muito pelo que lhe fizeram, foi uma pena...''. Mentira. Destruíram minha vida, a de John, a de Norman... A esposa de John se suicidou, eu me divorciei... Tudo por pedir que as pessoas sejam iguais. O COI permitiu tudo isso e o comitê norte-americano não fez nada para impedi-lo.
O senhor ainda vê racismo no esporte?
Enquanto o homem existir, haverá racismo. Temos um presidente negro e já avançamos muito, mas isso não quer dizer que tudo o que é negativo tenha sido eliminado.
Quando olha para trás, sente orgulho de sua vida?
Tenho muito orgulho. Meus pais lutaram muito para que fossemos adiante trabalhando. Minha força vem da minha origem. Minha força nasce da minha base pessoal e familiar. Nada pode destruir como eu me sinto.
O senhor ainda corre?
Sim, tenho uma academia na minha casa. Saio para correr no parque da Geórgia. Há muitos caminhos que antes eram locais de reunião da Ku Klux Klan. Os negros não podiam pisar nesses parques do sul dos Estados Unidos e hoje eu moro lá. Agora vivemos onde queremos e não onde nos colocam. E viajo pelo mundo inteiro para contar a minha vida.
O que significa a eleição de Obama?
Precisamos de uma mudança assim. Não porque ele seja negro, mas sim pelo que representa, a luta de toda a minha vida.
Do UOL Mídia Global, com agências
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