Toneladas de falsa lamentação estarão sendo difundidas pela mídia incapaz de olhar no próprio espelho e reconhecer que ela própria tem sido fator de disseminação de mensagens que cultuam a violência. No caso Eloá, as redes de TV deram um funesto passo adiante no desrespeito às normas mais básicas do processo civilizatório: pelo menos três redes de TV comunicaram-se diretamente, por telefone celular, com o assassino Lindemberg Fernandes, durante o transcurso do ato criminoso, revelando a mais absoluta irresponsabilidade e, até que se prove o contrário, com capacidade de interferir negativamente no desfecho do episódio, quando ainda estava ocorrendo uma negociação das autoridades policiais na tentativa de evitar o pior, que acabou ocorrendo.
Conforme já divulgado, a apresentadora Sonia Abraão, da Rede TV, chegou mesmo a entrevistar longamente Lindemberg por celular no exato momento em que o oficial da PM tentava desesperadamente um contato telefônico com o criminoso. Resultado: o celular estava ocupado!!! Isto é de uma gravidade gigantesca!!!
Quem dá o direito aos meios de comunicação de sentirem-se acima das normas da sociedade, de considerarem-se mais importantes que a própria polícia, de decretarem arbitrariamente - revelando prepotência - que mais importante que a negociação é a entrevista que faziam como o seqüestrador? Será a sacrossanta lei do “vale tudo pela audiência”? Êpa!!! Aqui se verifica a transposição apavorante do limite entre civilização e barbárie!
Ibope
A menos que a psicologia tenha desistido de tudo diante do ceticismo que tais episódios podem causar sobre a capacidade humana de avançar no processo civilizatório, é inegável que uma negociação adequada, uma persuasão na dose certa, uma palavra precisa orientada por critérios científicos podem, sim, sensibilizar um sujeito transtornado e até demovê-lo de chegar às últimas conseqüências, salvando vidas em risco.
Sim, há uma longa trajetória de acertos e erros nesta matéria, mas, até onde se sabe, os especialistas em saúde mental conseguem inúmeros êxitos basicamente através de técnicas de neutralização dos distúrbios destrutivos, evitando que os protagonistas de atos violentos, como Lindemberg, cheguem às últimas conseqüências. É rigorosamente inaceitável que se despreze o legado de Freud, Adler, Reich, Jung e os progressos já alcançados na área da saúde mental pela humanidade assim em troca um pontinho a mais no Ibope.
Afinal, os amigos de Lindemberg testemunharam que ele sempre foi um cara normal, boa praça, camarada, um jovem pobre de periferia enfrentando as adversidades que o capitalismo colocou à sua frente. Portanto, será que uma pessoa assim não poderia afinal ter se sensibilizado pela negociação conduzida sob orientação de psicólogos?
Sim, em tese poderia, pois desconhecem-se antecedentes de conduta violenta ou anti-social de Lindemberg. Sim, poderia, mas não com as televisões, com sua capacidade de alterar o comportamento de qualquer ser humano — e é impossível negar isso — telefonando para ele, querendo entrevistá-lo “ao vivo”, sabendo-se que ele tinha a televisão ligada, conforme foi informado.
O que estas entrevistas interferem num sujeito que já estava completamente transtornado por um surto violento? Qual a possibilidade de que ao insuflar o seu ego, lançando-o no terreno escorregadio da “fama”, transformando-o numa “celebridade”, tornando ainda mais complexa a cena do crime, adulterando todo o processo de diálogo negociador que vinha sendo mantido com o policial encarregado, a mídia terminou por entrar em cena num crime em andamento, com entrevistadores que não são especialistas nem em segurança pública, nem em saúde mental, nem em ciências jurídicas, mas simplesmente à busca do desprezível “furo jornalístico”, aumentou os fatores de risco das adolescentes seqüestradas?
Ainda que estas perguntas não sejam todas respondidas facilmente, terá a mídia o direito de estabelecer por decreto que ela pode colocar-se em contato direto com um sujeito que está cometendo um crime simplesmente porque para ela o furo jornalístico está acima da vida? Uma sociedade que desenvolve as tecnologias da comunicação mas não desenvolve os instrumentos de sua humanização, revela-se uma sociedade com componentes bárbaros.
E revela também o risco de termos meios de comunicação tão ágeis, tão abrangentes, mas, por estarem sem controle social humanizador, capazes de ampliar a insegurança, resvalar para o papel de cúmplice de um ato criminoso na medida em que, à revelia de qualquer orientação das autoridades policiais, adentra eletronicamente a cena do crime, introduz a retro-alimentação de valores e mensagens que aprofundam o distúrbio de um seqüestrador já em transe psicótico, que passa então a ver o seu ato na tela da televisão ligada no apartamento transformado em cativeiro. Que efeitos isto pode ter na sua decisão de matar ou render-se?
Com a palavra os especialistas em saúde mental, particularmente aplicada à área de segurança pública: ao se ver na tela, entrevistado por estas desastradas apresentadoras, o efeito psicótico do fato comunicativo que o torna “celebridade”, não pode agravar a complexidade de seu transtorno, não pode insuflar ainda mais seus instintos violentos, não pode interferir negativamente no desfecho ao entorpecer o processo de negociação, que, afinal, sofreu várias interrupções para que as televisões, como abutres, celebrassem o seu “vale tudo pela audiência”???
Como alternativa não seria mais lógico, mais sensato, sobretudo mais humano do que espremer aquelas 100 horas de seqüestro para que produza o máximo de sensacionalismo possível, simplesmente não dar nenhuma divulgação até o desfecho final do episódio? Especialmente, porque os magnatas da mídia — especialmente os do departamento comercial das TVs, de olho no Ibope minuto a minuto — sabiam que Lindemberg tinha uma TV ligada. Insufladas pelo departamento comercial, as redações se agitam: “Vamos entrevistar o seqüestrador ao vivo!!!”. Se isto aumentava o risco de vida de Eloá e Nayara... não era o elemento mais importante.
Afinal, vale tudo pela audiência, decreta a barbárie do mercado! Mas, também as autoridades policiais sabiam desta ação irresponsável das tevês: por que não determinaram a suspensão destas entrevistas? Por que não há rigorosamente nenhum controle social sobre os meios de comunicação social no Brasil hoje se vamos acumulando tragédias desta natureza?
A mídia pode ampliar o risco de vida no desfecho de um seqüestro. No sul também já houve um episódio assim, onde reportagem negociou com um seqüestrador tendo como pano de fundo conseguir que a sua rendição fosse aprazada por um tempo para que o fato fosse noticiado ao vivo dentro do horário do telejornal da emissora gaúcha. Quando Marx fala que ainda estamos na pré-história da civilização muitos não acreditam...
Cumplicidade
Para revelar esta barbárie basta lembrar outro carnaval televisivo de culto à violência: o caso do assassinato da menina Isabela Nardoni. No dia da reconstituição do crime, as redes de televisão transmitiram nove horas seguidas ao vivo, sem interrupções para comerciais, derrubando mesmo a grade comercial.
Sim, mas igual “esforço de reportagem” não é feito para uma divulgação apropriada, equilibrada, humanizada de informações sobre a violência doméstica, pano de fundo daquele crime. Quando uma menina é assassinada alteram-se a duração dos telejornais, dos programas, derrubam-se até grades comerciais.
Mas, para uma política preventiva, de humanização das relações familiares, de construção de consciência amorosa, revelando e abordando adequada e delicadamente a existência do grave problema de saúde e de segurança pública que é a violência doméstica, as tevês fazem o mais absurdo dos silêncios, aproximando-se assim da cumplicidade, pela via da omissão, por deixar de cumprir o que reza a Constituição, segundo a qual a mídia deve ser fator de elevação educacional, cultural e civilizatória.
Espalhar o terror para vender segurança... privada
Hoje a nossa mídia predominantemente “espalha terror para vender segurança”. Os desenhos animados são aterrorizantes, emitem sons freneticamente agressivos, os personagens matam com a maior facilidade, as armas são os ícones mais difundidos, não são os livros, os heróis da nacionalidade. Armas têm sua imagem super divulgada como poder, prazer, ação, emoção ou simples objeto de consumo, atributo de status.
Desse desfile permanente de armas na telinha depreende-se quase que uma máxima: “que sentido tem uma vida sem armas?”. Talvez alguém cinicamente tente dizer que a multiplicação de empresas de segurança privada para ricos, de milícias armadas em bairros pobres e o enxugamento da segurança pública como parte da demolição neoliberal do estado não tenha nada que ver com isto tudo que estamos tratando. Foi este critério pretensioso e prepotente, sempre na linha do vale tudo pela audiência, que conduziu Tim Lopes ao seu suplício, quando a TV Globo já dispunha, com antecedência, de todas as informações sobre o risco que o repórter corria.
Mas a TV segue com o circo de horrores. Assim como, pela lógica da divulgação em tirânica abundância, parece que “não tem sentido um mundo sem cerveja, sem Coca-Cola, sem a velocidade dos super carros anunciados, velocidade impossível pelos engarrafamentos de um transporte inviabilizado pelo individualismo em detrimento do coletivo”.
Provavelmente jovens como Lindemberg não se transformassem em criminosos se lhes alcançasse uma televisão humanizada, civilizada, que não cultue e não propagandeie a arma. Uma televisão que não realimentasse permanentemente o animalesco critério de que “eu amo tanto esta mulher que se ela não me quiser eu a mato de tanto amor”.
Temos uma TV machista também, temos uma TV debilóide, uma TV para brancos, para adultos, uma TV embrutecedora, destinada a vender e vender e vender, a formar consumidores, e quem não puder comprar um tênis caro é impelido a matar alguém para roubar um tênis, como ocorreu em Brasília. Afinal, a vida não tem sentido sem um desses tênis caríssimos... Temos uma TV de erotização doentia, uma TV que nos empurra para o alcoolismo, que nos recomenda, como a Lindemberg, a intolerância e o machismo, particularmente com armas nas mãos, quando enfrentamos uma angústia ou uma dor amorosa.
Temos uma TV bárbara. E não tem que ser assim, pois há no mundo experiências de TVs que são vetores educativos, culturais, humanizadores. A TV em Cuba evita a divulgação de crimes e não há publicidade comercial. Mas divulgam-se livros, filmes, datas históricas, heróis do país e do mundo, espetáculos de balé e música clássica. Crimes não!
Aqui podemos assistir desde sexo o mais vulgarizado até seres humanos espancando-se infinitamente com chutes e cotoveladas no rosto uns dos outros. Há canais para leilões de cavalos, bois, tapetes, corridas de cavalo, mas raramente há programas sobre inúmeros problemas de saúde mental para uma população carente de informação educativa, tal como pregou o presidente Lula ao determinar a criação da TV Brasil.
Aliás, registre-se a sóbria e equilibrada cobertura da TV Brasil sobre a tragédia de Eloá. Este é o caminho. A televisão é uma ferramenta muito importante para estar sob o controle da lógica bárbara e anticivilizatória do mercado, deve estar sob controle social, humanizador e democrático. Aliás, vale lembrar, as TVs que cometeram este espetáculo de barbárie no caso Eloá são as mesmas que durante anos enalteceram, recomendaram, sustentaram, sem discussão democrática, os valores do mercado como diretriz para o funcionamento da sociedade e agora, diante do enormes prejuízos que as fraudes mercadológicas especulativas causaram ao contribuinte norte-americano, podendo nos atingir, estas tevês não reconhecem o seu erro. Estão acima do bem e do mal.
É, portanto, urgente o desenvolvimento de mecanismos de controle social da mídia no Brasil. Ou, se nada for feito neste sentido, com dor e realismo somos obrigados a nos perguntar: qual será a próxima façanha da TV-barbárie? Sei que na Espanha alguns canais chegam a transmitir suicídio ao vivo... Foi para isto que se criou a televisão?
* Beto Almeida é presidente da TV Comunitária de Brasília