O sambista que falava com as rosas

Neste mês, celebra-se o centenário de nascimento de Angenor de Oliveira, o Cartola, fundador da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e autor de O sol nascerá e Sala de recepção

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A música popular brasileira, principalmente o samba, tem uma identificação com a constituição do país como nação. Não é coincidência que a República e a música urbana tenham a mesma idade e, em certo sentido, o mesmo projeto. Tanto as instituições políticas quanto a nova forma de comunicação apontam para um cenário diferente, em que as pessoas que vivem na cidade adotam uma linguagem mais franca e uma forma de existência mais consciente. O Brasil se transforma em Brasil ao som do samba. Entre os muitos compositores que ajudaram a escrever esta história está, ao lado dos maiores, Angenor de Oliveira, que ficaria conhecido como Cartola. Nascido em 11 de outubro de 1908, o autor de Acontece foi ainda um dos fundadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, em 1928.

Arquivo/O Cruzeiro/EM/D.A.Press
Divino Cartola com dona Zica: parceria que marcou a cultura brasileira nos anos 1960
O centenário de Cartola é momento para reflexão sobre a importância da obra do compositor. Cartola viveu uma vida de exceção, quase sempre na contramão. Há vários mitos em torno de sua vida que ainda habitam o imaginário do brasileiro, que parece gostar mais de uma boa história do que da verdade. Em primeiro lugar, Cartola não era um exemplo de gênio ignorante que venceu as adversidades do destino. Nasceu no Catete, na Zona Sul do Rio, e teve infância confortável em Laranjeiras. Seu avô era cozinheiro do vice-presidente Nilo Peçanha. Ele só vai para o Morro da Mangueira aos 11 anos, mais exatamente para o Buraco Quente, na época um pequeno ajuntamento de casas.

A origem explica, por exemplo, o gosto literário sofisticado e parnasiano do compositor, que admirava Guerra Junqueiro e, em alguns sambas, tascou alexandrinos perfeitos. Mas o rapaz, mesmo com apuro literário, gostava de arenga. Com outros colegas, fundou em 1925 o Bloco dos Arengueiros, que fazia música e confusão. Logo o compositor se liga a outros expoentes de sua arte, como Carlos Cachaça, mangueirense que se tornaria seu principal parceiro. A turma, que recebia respeito em razão da habilidade como ritmista, logo escolhe o lado da arte e parte para fundar a primeira escola de samba. Escola, nessa época, era sinal de respeitabilidade.

Cartola fez um pouco de tudo para sobreviver (tipógrafo, lavador de carros e contínuo) e vem do ofício de pintor e pedreiro a origem do apelido: vaidoso, usava um chapéu-coco para evitar que tinta e reboco caíssem em sua cabeça. A elegância, como se vê, ia além da música. Excessos e boemia levaram a saúde do jovem sambista. Tratado por uma vizinha, Deolinda, recupera-se. Ela seria sua primeira mulher. A música, então, era um prazer que prometia algum retorno. Mas não para ele.

Nos anos 1930, a força do rádio e da nascente indústria fonográfica criou a prática de compra e venda de sambas. Os grandes cantores, como Mário Reis e Francisco Alves, trocavam a autoria das canções por alguns tostões. Cartola não escapou do assédio, mas sempre se preocupou em manter, no mínimo, a parceria. O compositor já era conhecido por sambas como Divina dama. Mesmo mantendo a autoria das canções, a grana era curta. Cartola penou enquanto muitos artistas prosperavam.

Em 1940, um fato marca a carreira e a biografia de Cartola. O maestro Leopold Stokowsky, representando os EUA em sua estratégia de política de boa vizinhança, vem ao Brasil para duas apresentações. Por intermédio de Villa-Lobos, um apaixonado pela cultura popular, recebe no navio Uruguai artistas convidados pelo maestro brasileiro. O projeto era a gravação de “música folclórica”, que renderam dois discos que se tornaram raros. Entre os convidados de Villa-Lobos estava Cartola, que registra dois sambas.

Esses fatos caracterizam a primeira fase da carreira de Cartola, um músico admirado por seus pares, que recebeu elogios de Villa-Lobos e vendeu sambas para viver. Há um certo romantismo, mais um mito perigoso, de que se tratava de fase preparatória da indústria cultural no país e daí a inserção enviesada do sambista. Na verdade, como mostra o interesse norte-americano e a potência do rádio como formador de opinião e de público, de romântico o momento não tinha nada. Cartola não era um marginal, mas era tratado marginalmente numa cultura que tinha o centro em determinadas classes sociais, sobretudo a burguesia que se firmava como consumidora de arte.

Em seguida, o compositor entra num longo período de ostracismo, até ser redescoberto, nos anos 1960, por Sergio Porto. Não havia lugar para samba num país que parecia ter entrado num surto de bolero e samba-canção para dançar em boate. Para muitos, Cartola, autor de sambas que todo mundo conhecia, já estava morto ou mesmo havia se tornado uma lenda. Casado com dona Zica, depois de perder a primeira mulher, Cartola funda o bar Zicartola, que mesclava música e os quitutes da esposa. Tornou-se logo um ponto de samba e choro, freqüentado por intelectuais. O bar durou pouco, apenas dois anos, afogado em dívidas. O endereço agrupava também a oposição política à ditadura militar e os primeiros interessados em ligar resistência política e cultural.

Foi o tempo do CPC da UNE, do nacional-popular, do show Opinião, de Nara Leão, Zé Kéti e João do Valle. O samba recupera sua importância (como se a bossa nova não fosse samba), mas nem por isso Cartola tem o resgate devido. Mais uma vez, ele parecia ser a pessoa certa no momento errado. Compositor popular refinado, autor de melodias lindas e mestre na harmonia, ele não se enquadra no padrão do sambista de morro ingênuo ou politizado. Seu lirismo e a força psicológica de seus personagens destoam de maniqueísmos de qualquer espécie.

Em 1974, ao 65 anos, ele finalmente grava seu primeiro disco, em selo independente de Marcus Pereira. Pode parecer inacreditável, mas o Brasil se deslumbra com os sambas de Cartola, como se fossem, mais uma vez, uma descoberta do momento. Elegante, ele soube conviver com o sucesso, gravar novos discos, cantar com jovens no Projeto Pixinguinha e deixar como clássico definitivo As rosas não falam. Morreu em 1980, aos 72 anos.

Cartola foi um tipo único de compositor: ótimo com os parceiros, conseguia ser melhor sozinho; poeta sofisticado, era um melodista capaz de beleza e originalidade mesmo no contexto do samba mais tradicional; animador cultural e criador de escola de samba, manteve a discrição para atravessar as crises sem incomodar os amigos; autor de obra densa no campo do samba, compôs também temas sertanejos, pouco conhecidos.

Seu descompasso em relação ao sucesso – praticamente brincaram de esconde-esconde durante toda a vida – permitiu que mantivesse a coerência e desse à luz um conjunto de obras-primas que faz dele uma das maiores vozes do samba brasileiro de todos os tempos. Ele não precisou agradar a ninguém. Tinha um compromisso pessoal com sua verdade. Ele estava destinado a escutar as rosas. E transformar a voz das flores em tristes sambas de amor.

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