Voz engajada : Elizeth Gomes - Cantora lírica

Destaque da ópera Aída, soprano Elizeth Gomes chama a atenção para as dificuldades enfrentadas por cantores negros e quer criar projeto de incentivo a jovens talentos
Janaina Cunha Melo
Paulo Lacerda/Divulgação
Elizeth Gomes interpreta Aída, a princesa escravizada pelos egípcios
Elizeth Gomes - Cantora lírica

Aos 6 anos, Elizeth Gomes fez seu primeiro solo como corista da igreja freqüentada pela família. Desde pequena, a música faz parte de sua rotina. O hábito doméstico de compartilhar canções e experiências de prática em conjunto permitiu o aprimoramento individual de cada uma das seis irmãs Gomes. Protagonista da ópera Aída, de Giuseppe Verdi, em cartaz no Grande Teatro do Palácio das Artes, a cantora negra, cujo talento é reconhecido nacionalmente, interpreta a protagonista pela terceira vez em Belo Horizonte.

Na pele da princesa etíope escravizada pelos egípcios, Elizeth compara sua trajetória às desventuras da personagem e faz duras críticas à suposta democracia racial brasileira. As dificuldades para os negros no canto lírico são enormes, observa. A qualificação exige conhecimento de outros idiomas, como inglês, alemão e italiano, e requer alto investimento, o que, na maioria das vezes, implica conquistar disputadas bolsas para graduação e aperfeiçoamento.

“Nossos desafios são anteriores a nós. Vieram com a escravidão e com o processo de abolição, que não considerou as necessidades do nosso povo. Não herdamos nada, nem terras para subsistência. Os escravos foram para os morros, com medo de serem retirados até mesmo dos pequenos espaços em que se assentaram”, argumenta.

Mas Elizeth não é pessimista. Propositiva e confiante, ela quer multiplicar os benefícios de suas conquistas e, se possível, minimizar as dificuldades de jovens cantores. “Minha vontade é ajudar não apenas os artistas negros, mas os brasileiros talentosos que precisam de oportunidade”, diz. Entre os planos da cantora está a criação de projeto para iniciantes em canto lírico. “Minha missão está cumprida, agora falta poder incentivar outras pessoas para manter o nível a que chegamos em Minas Gerais. Fui muito ajudada por minha família e por várias outras pessoas. Chegou a minha vez de retribuir”, afirma. É penoso para a cantora ter notícias de jovens aptos para os palcos que se perderam pelo caminho por falta de motivação e de condições reais de aprendizado.

EM FAMÍLIA

No elenco de Aída, Elizeth atua com a irmã, Enanci Gomes, mezzo-soprano do Coral Lírico de Minas Gerais. E se orgulha de acompanhar de perto o desenvolvimento do sobrinho, Dênis Marques Gomes de Oliveira, integrante do corpo estável do Palácio das Artes e da nova montagem da ópera, regida pelo maestro carioca Roberto Duarte.

Apesar de o talento da cantora ter se manifestado ainda na infância, Elizeth chegou a pensar em outra profissão. Com 1,74m de altura, teve ótima atuação como jogadora de vôlei na juventude. Em 1984, a decisão de participar do Festival Internacional de Música, no Distrito Federal, definiu sua trajetória. Do encontro surgiu o convite para ser ouvida pelos diretores do Teatro Nacional de Brasília e a indicação para interpretar Clara, protagonista da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin.

“Fui para a audição sem saber das intenções deles de me avaliarem para o papel. Definido o elenco, fizemos master classes com cantores norte-americanos e recebemos toda a preparação. Foi o meu primeiro grande personagem de uma obra conhecida no mundo inteiro”, lembra. Dois anos depois, ela foi contratada pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em seguida, integrou o coral da prestigiada Orquestra do Estado de São Paulo (Osesp), antes de voltar para Belo Horizonte.

PROFESSORA

Marcos Vieira/EM/D.A Press
Na entressafra das produções especiais, entre óperas e concertos, Elizeth dá aulas de canto e aceita convites para casamentos e festas particulares. Além de reforçar o orçamento, a outra frente de trabalho ajuda a manter o repertório em dia, pois ela se exercita em música de câmara e cria parcerias com instrumentistas sinfônicos e integrantes de corais. Mas a falta de incentivo é um obstáculo. “Esse é um dos aspectos mais difíceis para os cantores líricos. Todos reclamam da ausência de apoio. Geralmente, os cachês não são tão bons quanto se merece ganhar. Falta reconhecimento da importância do que fazemos”, lamenta. Anualmente, os principais teatros europeus proporcionam ao público de quatro a oito óperas ou concertos de grande porte. No Brasil, a média não chega a três montagens. Poucos são os corais profissionais que remuneram os integrantes.

Entre mestres como Julio Medaglia, Afrânio Lacerda, Marcelo Ramos e Silvio Viegas, que Elizeth Gomes destaca como fundamentais ao rigor de seu trabalho, ela presta homenagem especial a Sergio Magnani, italiano radicado no Brasil, falecido em 2001, considerado um dos maiores incentivadores da música erudita em Belo Horizonte e no país. “Ele me ajudou muito na expressão, ensinou-me árias e principalmente postura. Ele foi um grande músico, orientou vários cantores na cidade”, conclui.




"Minha vontade
é ajudar não apenas
os artistas negros,
mas os brasileiros talentosos que
precisam de oportunidade"

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