Gislaine Espíndola*
As favelas do Rio de Janeiro somam 513, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/Censo 2000). Mais de 100 estão localizadas em três bairros da Zona Oeste, o que significa uma mudança e tanto para uma área que há 40 anos era um vazio no mapa. Mas por que eu estou escrevendo isto? Fui parar na Zona Oeste quando vim morar no Rio de Janeiro, aos 9 anos de idade, em 1993.
Meu pai, assim como tantos outros trabalhadores, veio do Mato Grosso do Sul com toda a família em busca de emprego na construção civil. Cabe lembrar que ele já tinha tudo arranjado aqui com a ajuda de um amigo. Era um tempo de expansão da Barra da Tijuca e da favela de Rio das Pedras, onde fomos morar.
Foi no início do governo César Maia. Lembro que a minha primeira impressão foi um tanto curiosa diante de tantas casas amontoadas; ao contrário da minha cidade natal, as casas não tinham quintal e brincávamos pelos becos. Chamava também a atenção a falta de coleta do lixo. Melhorou alguma coisa, mas não sei se posso dizer muito. Fizemos muitas amizades. Lembro que era com certo entusiasmo que nós, moradores, enxergávamos o crescimento de Rio das Pedras. O pipocamento de comércios de pequeno e médio portes animavam os investimentos e a ida das pessoas para lá, assim como a idéia de uma comunidade “pacífica”, ou seja, sem tráfico de drogas.
Ficamos quatro anos lá, depois nos mudamos para um loteamento no Itanhangá. Por ser mais próximo da Barra, era constituído por um misto de classe média e pessoas não tão de classe média assim, mas que estavam começando a ter certa mobilidade social por conta dos serviços que prestavam no local.
O choque foi marcante, minhas novas amigas, que não tinham tanto dinheiro assim, faziam piadas a meu respeito quando os assunto seram negros ou favelados. Diziam em tom de brincadeira: “Lá vem a defensora dos pobres. Gislaine vai virar vereadora do Rio das Pedras!” Encabulava o fato de muitas delas terem o mesmo nível que algumas de minhas amigas da favela e terem uma visão distorcida a respeito desses moradores. Hoje em dia, muitas vão a Rio das Pedras e também têm amigos e amigas lá.
Quando completei 20 anos, fui morar com meu atual esposo. Voltei a viver em favela, Tijuquinha, uma comunidade menor, próxima à Barra da Tijuca. Esta também vem crescendo bastante. Estive lá por três anos e foi muito difícil sair para uma moradia formal. O fato de trabalharmos numa microempresa de animação de festas ainda não regularizada dificultou o processo. Seguindo os passos de meu pai, também atendemos uma demanda das classes média e alta da Barra da Tijuca.
Atualmente, moro numa vila próxima a Rio das Pedras, vou lá habitualmente para usufruir de serviços de salão de beleza, mercadinhos, lojinhas, lanchonetes, visitar amigos e, de vez em quando, baile funk.
Não sei se posso dizer que a minha relação com a favela é a mesma de um morador, de alguém que fala de dentro. A minha relação foi sempre cambiante, embora tenha uma visão de dentro, às vezes estou do lado de fora. Rio das Pedras também é um caso sui generis. Caso tivesse parado em outra favela dominada pelo tráfico de drogas, não sei se teria a mesma relação. Não que o tráfico seja melhor ou pior que a milícia, é que simplesmente não conheço de perto esta relação.
O fato é que as favelas não são todas iguais nem seus moradores. Nem todos os moradores são definitivos, nem todos têm documento de posse, nem todos são ocupantes, nem todos vivem de aluguel. O único fato que me parece comum a todos é que estamos incluídos no capitalismo, às vezes formalmente, às vezes informalmente, sem fazer parte dos plenos direitos à cidade e à cidadania.
Quem pode sai e muitas vezes não quer nem ouvir falar do lugar onde viveu. Outras vezes, a amizade continua, a freqüência continua, há algum comprometimento com o lugar e com as pessoas que não saíram. Muitas vezes as pessoas ficam não por falta de alternativa, mas porque já construíram as suas vidas na favela, vivem do seu “borbulhamento, da sua fervura, da sua intensidade”. Outras não saem porque já conseguiram o seu “cantinho, a sua casinha, é pequenininha, é apertadinha, é na favela”, mas é sua.
Quem chegou primeiro construiu seu próprio império, quem chegou depois procura um canto para ficar, algo para algum dinheiro arranjar. E a questão da habitação continua. Favela não é problema, favela é solução! Solução capitalista dos favelados para a falta de uma política habitacional e para a flexibilidade do capitalismo. O emprego fixo é um privilégio de poucos, o aluguel é muitas vezes a única renda fixa de muitas famílias, assim como o comércio. No entanto, o aluguel também produz uma espécie nova dentro das favelas, os locatários.
Se esses andarilhos também seriam favelados, essa é uma pergunta que não saberia responder. Sair ou ficar, ser leal e ajudar a levantar a voz deveria ser um compromisso de todos que já viveram ou vivem essa realidade.
Às vezes, sair é mais fácil para uns do que para outros, ficar é melhor ou a única alternativa mais para uns do que para outros, mas nem sempre esse sair ou ficar tem se transformado em lealdade e voz. Há tanta diversidade quanto fragmentação e, muitas vezes, isso tem impedido os próprios moradores de se enxergarem num mesmo barco. Será que é este um mesmo barco? Quem aluga e quem vive do aluguel compartilham o mesmo espaço, até quando? Quem fica? Quem sai? Quem entra? Quem tem vontade de voltar? Quem pode e tem vontade de falar?
*Bacharel em Ciências Sociais.
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