"Teatro não é "projeto social de resgate"

Para integrantes de grupos "periféricos" de Rio e São Paulo, visão paternalista reforça estigma e diminui mérito artístico

Nós do Morro e Núcleo Bartolomeu estão em cartaz até amanhã em SP com adaptação de "O Alienista" e musical "Cindi Hip-Hop"


LUCAS NEVES
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Por ingenuidade ou deslumbramento, os personagens da Itaguaí de "Machado a 3x4", adaptação do grupo carioca Nós do Morro para "O Alienista", deixam-se internar pelo renomado psiquiatra Simão Bacamarte para o estudo de suas faculdades mentais. Em "Cindi Hip-Hop", releitura do paulista Núcleo Bartolomeu de Depoimentos para a história de Cinderela, são chefes e tutores intransigentes aqueles a cercear quatro jovens da periferia.
Fora do palco, os integrantes das duas companhias não querem saber de enquadramento -quadros, aliás, são usados em "Machado..." para marcar quem é louco e "diferente".
Reunidos pela Folha para um bate-papo depois da sessão desta peça na última quarta, em São Paulo, eles apontaram semelhanças em seus trabalhos e reclamaram do paternalismo e das infernais boas intenções que procuram caracterizá-los como "projeto social que resgata" -além de encurralá-los numa espécie de "cota" teatral da periferia/morro.
O Nós do Morro foi fundado em 1986, na favela do Vidigal (zona sul do Rio), pelo ator e jornalista Guti Fraga. O Núcleo Bartolomeu, que testa combinações da cultura hip-hop com o teatro épico (definido pelo distanciamento na interpretação e pela presença de narrador), existe desde 1999. O elenco é parcialmente formado por atores da periferia paulistana.
O ator Pierre Santos improvisa uma cena para ilustrar como o Nós do Morro é muitas vezes visto fora do Vidigal.
"Uma coisa que sempre me incomodou é que o jornalista já vai nos entrevistar sabendo o que quer ouvir. Por exemplo, que, se eu não fosse do teatro, seria do bicho", diz, usando um eufemismo.
"Essa coisa "projeto social que resgata", sabe?", explica, para em seguida imitar o personagem-repórter que inventou: "Fala a verdade, você seria do bicho. Fala a verdade, se você não fosse do teatro, você ia estar ali na esquina vendendo alguma coisa? Não é? Você não foi resgatado?'"
"Claro que vai vender muito jornal", diz. "Olha só, o projeto salvou milhões de bandidos."

"É a obra que vale"
A dramaturga e diretora Claudia Schapira, co-fundadora do Bartolomeu, faz coro na crítica à visão "redentora". "O teatro não é bom por causa disso. É essa a questão. É arte. Senão, qualquer coisa que o grupo faça, só porque "tira" as pessoas disso ou daquilo, já é válida. Não é. É a obra que vale."
Ela acha que falta a certa ala teatral disposição para romper com as "expectativas academicistas" e perceber que "mudaram os valores, o ator é outro, tem outra bagagem e formação conquistada por outras vias". "Que os coletivos são profissionais é evidente. Falta reconhecimento, sem categorização."
Para a atriz Flávia Coutinho, do Nós, a estigmatização passa a idéia de "que a gente está brincando, e não exercendo a nossa profissão". "Encararem a gente dessa maneira não é levar a sério. É como dizer: "Olhem lá, os coitadinhos". E não somos."
A busca pelo descolamento desse rótulo não significa, para os grupos, deixar de falar de sua realidade.
"No modelo de teatro tradicional, não tem negro, não tem pobre, não tem hip-hop. É um discurso, uma visão de classe muito determinada: fala de si para si mesma", diz o DJ e coreógrafo Eugênio Lima, do Bartolomeu. "Nosso discurso é pela auto-representação, pela legitimidade na encenação. Eu não outorgo a ninguém o direito de contar a minha história. Ninguém vai contar para mim o que é que eu sinto, o que é ser negro em São Paulo."
É no uso do coro como ferramenta para se apropriar de sua própria história que os cariocas e paulistas vêem a principal interseção entre suas trajetórias.

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