Nelson Missias de Morais - Juiz de Direito, presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis)A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o uso de algemas tem gerado notícias até um pouco espetaculosas e controvertidas. Na verdade, é mesmo um assunto polêmico. Tanto o é que 24 anos depois da entrada em vigor da Lei 7.210/84, que prevê, em seu artigo 199, a regulamentação do uso de algemas por decreto presidencial, o Poder Executivo ainda não o fez. Divergências nas decisões dos nossos tribunais sobre a matéria sempre existiram, assim como entre os doutrinadores.
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Ainda que timidamente, até então a única atitude estatal de que se tem notícia sobre a matéria partiu do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ao baixar a Resolução 14, em 11/11/94, que assim dispôs: “Art. 29 - Os meios de coerção, tais como algemas e camisas-de-forças só poderão ser utilizados nos seguintes casos: I – como medida de precaução contra fuga, durante o deslocamento do preso, devendo ser retirados quando do comparecimento em audiência perante a autoridade judiciária ou administrativa; II – por motivos de saúde, segundo recomendação médica; III – em circunstâncias excepcionais, quando for indispensável utilizá-los em razão de perigo iminente para a vida do preso, do servidor ou de terceiros.”
Ocorre, entretanto, que essa resolução traça apenas diretrizes de política criminal e penitenciária, sem caráter imperativo. Não vincula o julgador.
Já a súmula vinculante, incorporada ao nosso ordenamento jurídico com a edição da Emenda Constitucional 45/04, além de diminuir o número de recursos que chegam ao STF e às instâncias superiores e de visar à celeridade processual – com a solução definitiva dos casos repetitivos que tramitam na Justiça – imprime, também, um caráter normativo e encerra a discussão sobre a matéria.
Desta forma, com a edição da sua 11ª súmula vinculante, em 22 de agosto de 2008, o STF consolidou o entendimento de que o uso de algemas somente é lícito se utilizado como medida excepcional, em casos onde se apresente necessário. É o que se verifica em seu texto, a saber: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (súmula 11).
A edição desta súmula teve como escopo coibir o uso desordenado e abusivo da medida nos últimos tempos, com a exposição de pessoas algemadas aos flashes da mídia. Ocorre que, em muitos casos, não há sequer a instauração da ação penal e, em outros, ao final do processo, a pessoa exposta é absolvida. Nestes casos, a situação é ainda pior, pois além de violar o direito à dignidade da pessoa humana em público, ao vivo e em cores, outros princípios constitucionais são igualmente violados.
O renomado jurista Pontes de Miranda, em sua obra História e prática do habeas corpus, nos ensina que “o acusado não devia ser tratado como os indivíduos já condenados, recusando-se à prisão o caráter de pena. Por isso mesmo, o paciente havia de comparecer à Justiça com as mãos e os pés livres.”
Não se discute, aqui, a abolição das algemas – pois nos casos em que a segurança requer, devem mesmo ser utilizadas – mas, sim, a maneira indiscriminada e espetaculosa como têm sido usadas, pois, nestes casos, trata-se de prática que viola princípios constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e da presunção da não culpabilidade.
Ao Judiciário cabe aplicar a lei, à luz do caso concreto e promover a segurança jurídica, alcançada pelo resguardo à aplicação da vontade política da sociedade, materializada nas normas da Constituição, como o fez ao editar a Súmula Vinculante 11, o STF.
Aliás, essa súmula se amolda ao novo ordenamento jurídico sobre a matéria. O artigo 474 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 11.689, de 9 de junho de 2008, dispõe, em seu parágrafo 3º: “Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.”
Embora este dispositivo tenha sido direcionado ao processo de competência do Tribunal do Júri, trata-se de norma amparada por princípios constitucionais. Assim, o legislador infraconstitucional, mesmo não tendo tratado de forma mais abrangente a matéria, acabou por traçar uma diretriz.
Essa súmula, ao contrário do que se vê nos noticiários, se originou de um processo (HC 91.952-9) de um humilde pedreiro, da comarca de Laranjal Paulista, interior de São Paulo, que permaneceu algemado durante o seu julgamento. Os ministros entenderam que a juíza-presidenta do júri não fundamentou devidamente a decisão de manter o réu algemado. No próprio STF já havia precedentes nesse mesmo sentido.
Ressalta-se que não é medida desestabilizadora do trabalho dos policiais, pois esses podem perfeitamente utilizar-se desse instrumento de trabalho, desde que devidamente justificado. Mas os princípios norteadores do Estado de direito devem se sobrepor ao Estado policialesco. Com a súmula, o STF, mais uma vez, cumpriu o seu papel de guardião da Constituição da República
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