A Escola Estadual Caminho à Luz, no Bairro Esplanada, na Região Leste de Belo Horizonte, destina seu horário noturno a jovens entre 15 e 17 anos, moradores de uma favela próxima – nos turnos da manhã e tarde, estudam filhos da classe média. A professora Eliane Divina Oliveira Crispim, que, por opção, prefere dar aulas para alunos pobres que vivem nos bolsões miseráveis da capital, sonha em ver um Brasil mais justo e igualitário. Há dias, resolveu testar a sensibilidade dos adolescentes, pedindo-lhes que escrevessem textos parodiando o Hino Nacional (letra de Joaquim Osório Duque Estrada) e o poema “Canção do exílio” (Gonçalves Dias, escrito em 1843, em Coimbra, Portugal). Das redações resultaram manifestações que refletem o dia-a-dia de cada um, quase sempre sem sossego, sem comida, sem carinho, apenas com a esperança de melhores dias.
A aluna J.I.B. pontuou que, “sem o sorriso de cada dia, não conseguiremos conquistar a paz” e que, para isso, “desafiamos a tristeza”. Para ela, “o país precisa de sorriso, alegria, amor, felicidade”, pois “o povo padece”. Ela garante: “Brasil, verás que o filho teu não chora após a luta (...). Queremos sempre sorrir, mesmo sem poder”. O aluno T.A.L. é direto: “Os governantes do Brasil fizeram da sua rua filial do Vietnã. Deram rifle para suas crianças e estupraram sua irmã. Exilaram na favela o cidadão da teoria oprimido e censurado no país da democracia. Dão a ele crack, fuzil, cachaça no boteco. Esse é o campo de concentração moderno”. A aluna S.Q.C. optou pela desigualdade: “Meu Brasil guarda segredos de um povo escondido, esquecido... sofrido e desfavorecido (...), que derrama suor para ganhar um só centavo e comprar um pão duro para ser, seco, engolido”. Outra aluna, I.M.D.S., pergunta pelo “povo heróico, que não teme luta alguma”. Bate pesado: “Temos um povo que rouba por um pedaço de pão e os políticos que roubam toda a nossa nação (...). Infelizmente, no Brasil, valemos o que temos no bolso. Mas, mesmo diante de tudo isso, acredito no meu país (...). Acredito na recuperação do ser humano (...). Sou brasileira e não desisto nunca”. O aluno H.M.S. fala do menino de rua: “Eu fui gerado nos becos da favela (...). O meu despertador são as buzinas dos carros. Para eu ter o café da manhã, tenho que ir para os sinais clamar por uma esmola. Aos olhos dos motoristas, sou apenas um traficante ou mais um pivete. Eles fecham os vidros dos carros na minha cara; têm nojo que eu suje os seus carros com a poeira do asfalto estampada na minha roupa. À noite, sem nada para comer, nem sequer uma moeda no bolso, deito, olho para o céu e oro para que Deus ilumine uma alma bondosa para me libertar deste sofrimento. (...) Mas ainda é possível sonhar”.
O aluno W.J.A.S. destacou: “Nosso dia tem mais esperança. Nosso descanso tem mais sabor. Sonhamos, sonhamos, sonhamos. Nossa gente luta, luta, luta... Nossas vidas conquistamos com fé. Só acreditando em Deus que suportamos a exploração e as injustiças (...). Aqui, tem trabalhador que não há em outro lugar. Há horrores aqui que não encontro em nenhum outro lugar: violência, morte, pobreza, feiúra. A boniteza só os ricos podem desfrutar. Mesmo assim, prefiro andar sozinho, sem as más companhias para me influenciar. Prefiro sonhar, sonhar, sonhar . Um dia, o Brasil pode mudar”. A.P.S.C., em sua “Canção do extermínio”, diz: “Na minha terra, tem gente que mata gente (...). A gente não tem segurança para dormir, sofre o honesto e o ruim (...). Eu morro de medo dos bandidos favelados. Nossa comida é arroz com feijão. Ai quem me dera chupar uma laranja. Aí quem me dera ouvir o canto da esperança, na favela”.
A aluna I.C.G.F., sobre o Brasil, se defende: “Não é nossa culpa já nascermos na escuridão, mas também não é desculpa pelo descaso que sofre a população. Nossa Belo Horizonte, por fora, é uma beleza, mas, por dentro, é uma pobreza. Quando veremos os políticos realmente lutando pelo bem de toda a população desfavorecida? (...) Crianças e adolescentes entram no mundo do crime achando que vão se dar bem, ganhando muito dinheiro; eles não passam dos 15 anos. Vida de bandido pobre só tem três caminhos: cadeia, hospital ou cemitério. Da cadeia e do hospital podem até sair, quem sabe? E serem livres. Do cemitério, nunca mais”. Depois de criticar a desigualdade, o descaso com a saúde, saneamento básico e o meio ambiente, ele ainda tem esperança. “E assim vamos driblando a vida com este salário pequeno, que não dá para nada. Até quando esperar? Estamos cansados, mas com a esperança no coração. Pedimos a Deus que tenha piedade de nós (...).”
A professora Eliane Crispim também dá o seu recado: “Questiono-me todo o tempo se sou uma professora competente; se estou desenvolvendo nos alunos a consciência cidadã, de que eles podem fazer a história do Brasil e que não precisam ser super-homens para mudar a realidade brasileira. Quando era presidente, Fernando Henrique Cardoso disse que quem não sabe nada vira professor. Sou uma professora comprometida com a educação dos miseráveis. Faço a minha parte para mudar a cara deste país tão injusto”. Ela sabe que sozinha não pode mudar a realidade de toda uma comunidade excluída, mas tem convicção de que pode salvar muitos desses alunos do caminho do mal. Brasil afora, há centenas de outras escolas nas mesmas condições; na periferia da capital e na região metropolitana, várias. Nos fragmentos dos textos desses alunos do curso noturno, está escancarado o que é viver quase que só de sonhos e esperança – está o Brasil visto da favela. Pouco podem fazer para transformar a realidade. Garantem, contudo, que ainda têm força para sorrir e acreditar num país mais justo. Já é alguma coisa para quem as oportunidades passam ao largo. Cavalos arreados, para eles, não existem. |
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