Teatro Negro de Atitude

O poder da esperteza
Montagem do Teatro Negro de Atitude usa humor para questionar o mundo
Marcello Castilho Avellar


Tem quem ache Teatro Negro e Atitude nome um pouco arrogante para um grupo de teatro. Não é. Apenas afirma uma posição sobre como a cultura brasileira deveria ser, sobre como os brasileiros deveriam encarar suas relações com a cultura e a história. O Teatro Negro e Atitude está na estrada há anos, e o simples fato de que este crítico nunca escreveu um texto sobre ele fala muito da teia de relações sociais, econômicas, culturais e étnicas contra a qual o nome do grupo – e o grupo – se insurge. Quem assistir a A lenda de Ananse – Um herói com rosto africano verá que esse compromisso se realiza na cena. E que a suavidade e o humor da encenação não têm nada com a arrogância que os preconceituosos vêem no tal nome.

Aliás, o título do espetáculo traz a mesma afirmação ideológica. Em tese, poderia parar em A lenda de Ananse. Mas é bom lembrar que os signos com que o Teatro Negro e Atitude lida têm nome e endereço, têm uma origem definida, e ela está no continente que é freqüentemente negado pela nossa obsessão de parecermos europeus. Os signos de A lenda de Ananse e a lógica que os liga seriam mero entretenimento sem o subtítulo Um herói com rosto africano. Com ele, ganham dimensão cultural e histórica.

Rubens Rangel/divulgação
Trupe dirigida por Evandro Nunes se apresenta no Lagoa do Nado
Ananse é mais uma manifestação de um daqueles arquétipos que parecem atravessar todas as culturas. É Pedro Malasartes, Till Eulenspiegel, Peer Gynt, Macunaíma – o sujeito que surge num mundo cuja aparência de ordem esconde, na verdade, o caos representado pelo fato de que aquele lugar não foi feito para pessoas viverem e serem felizes, foi feito apenas para os poderosos, sejam deuses, sejam magnatas. Em todos esses casos, nosso herói conta apenas com sua esperteza para enfrentar o poder. Em muitas versões, será malvisto – afinal, é alguém que subverte a ordem. Independentemente do juízo que se faça dele, o herói é, antes de tudo, libertário. E, como conseqüência, representa, para o espectador, uma provocação ao questionamento constante da ordem.

O espetáculo, dirigido por Evandro Nunes, lida com este arquétipo empregando um bom arsenal de estratégias que vêm da tradição do teatro de rua, e permitem comunicação eficiente e direta com o espectador. Tudo tem sabor de raiz, de inventividade popular. A maneira como a peça usa tal repertório resulta numa encenação divertida e debochada – algo essencial para a construção do tal arquétipo. Até mesmo a eventual precariedade técnica – do equipamento e dos intérpretes – acaba se tornando elemento expressivo: A lenda de Ananse tem jeito mambembe que admite o rústico e o naïf como valores estéticos, e que acaba se transformando em humor e charme.

A LENDA DE ANANSE – UM HERÓI COM ROSTO AFRICANO
Centro Cultural Lagoa do Nado, Rua Ministro Hermenegildo de Barros, 904, Itapoã. Somente hoje, às 15h30. Entrada franca.

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