Acabo de ler Cartola — Os Tempos Idos, biografia de Cartola de autoria de Marília Trindade Barboza e Arthur de Oliveira Filho, edição atualizada que a editora Gryphus acaba de lançar. O livro é, que eu saiba, a única biografia do compositor. Há alguns anos, Mônica Ramalho lançou uma voltada para o público infanto-juvenil. Há outra em preparação, de Vagner Fernandes e Nilcemar Nogueira (neta de Dona Zica, que conviveu com o artista) — mas essa ainda não está pronta.
Leonardo Lichote, no blog MPB Player
Portanto, Cartola — Os Tempos Idos é referência inegável para qualquer um que queira conhecer mais sobre vida e obra de Cartola. E é bem interessante, particularmente, no ensaio sobre a formação do samba. Ali, a partir da compreensão da herança das culturas banto (Rio) e iorubá (Bahia), o livro defende que o samba é carioca e ataca o mito de que o ritmo foi levado da Bahia para o Rio pelas "tias Ciatas".
Mas a biografia tem problemas. Amigos já tinham apontado a dificuldade de se consultar o livro para procurar informações pontuais como data do casamento de Cartola com Zica — devido, sobretudo, à liberdade poética que os autores tomam sobre a cronologia e à ausência de um índice remissivo. O leitor também pode se confundir ao ver um apêndice "Letras" e não encontrar ali alguns dos sambas mais famosos de Cartola — seriam letras selecionadas ou inéditas ou o quê?
Não falo disso, porém. Nem do fato de uma "edição atualizada", como estampa a capa, faça referências no texto a personagens como Zica como se ela estivesse viva (apesar do apêndice dedicado a ela, que cita sua morte). Ou da atualização não ter chegado à lista de sambas desfilados pela Mangueira — o último a ser citado no livro é de 2003. Falhas como essa refletem a pressa para lançar a edição a tempo da comemoração do centenário de Cartola, mas não são tão graves.
O que me incomoda realmente tem pouco a ver com a precisão dos fatos ou os cuidados da edição. O que compromete a obra, a meu ver, é o olhar quase beatificador de Cartola. Ao retratá-lo como figura dotada de santidade, o livro perde a força da humanidade do personagem.
É um problema que atribuo menos a paixão de biógrafos por biografado e mais pela forma como gostamos de ver os artistas populares — sambistas, sobretudo. Uma gente sobre-humana, transcendente, iluminada, que merece que falemos deles embevecidos, tratando-os por termos muitas vezes vazios de verdade, como "mestres" e "tias", que refletem quase sempre a enorme vaidade que sentimos por nossa humildade.
As falhas de caráter desses artistas são relevadas em nome ou das "dificuldades da vida" ou de uma certa "graça malandra". Suas dubiedades são anuladas para dar espaço a um painel plano, mosaico de virtudes. Vejo essa condescendência redutora em Cartola — Os Tempos Idos, nos almanaques do samba e do choro, de autoria de André Diniz, e em algumas falas de Marisa Monte no (e sobre o) documentário O Mistério do Samba, que retrata a Velha Guarda da Portela.
No livro, a preguiça de Cartola — sei lá se isso é defeito — é minimizada, já que "há momentos em que ele trabalha muito". Seus "erros" de português — ora bolas, é um artista popular, que fazia versos para serem cantados, logo as regras são a da língua falada, da rua, não a culta, da escrita — são justificados em longas explanações que vão em Camões para que uma concordância estranha seja aceita.
Sua rigidez com pastoras que erravam os sambas — já ouvi relatos de que o compositor tinha uma postura realmente agressivo com elas — é tratada de leve na biografia, e desculpada porque é motivada pela paixão pela Mangueira. Sua infidelidade crônica no casamento é tratada como algo picaresco, não lembro de em momento nenhum aparecer algum questionamento de Zica, uma única briga do casal em torno desse tema (ela sofria?). Não que fofocas familiares devam ser o centro de um texto biográfico, mas se o tema "puladas de cerca" é abordado, que seja em toda sua complexidade.
É isso, falta conflito. Não briguinhas, ou adversidades. Conflito. Como se aquela vida fosse a de um herói (mesmo seus sofrimentos são encarados como provações heróicas), não a de um homem. "Os tempos idos" de que fala o livro são um mar plácido de rosas mudas.
Enfim, Cartola era gênio. Mas não era santo, nem demônio. Era humano. E, por isso, foi Cartola.
(nem santo nem demônio seriam capazes de escrever os versos de Tive, sim)
***
Um trecho do livro que ilustra, como anedota, parte do que escrevi acima:
"Cartola fez, ainda, duas incursões pelo campo da pintura. (...) O quadro de Cartola, uma natureza-morta, mostrava um violão e um copo de cerveja mal cheio, com 'colarinho' de espuma. Em sua casa há outro quadro, inacabado, uma mulher. Este último MUITO RUIM, enquanto o primeiro é BASTANTE ACEITÁVEL. Ambos, entretanto, revelam que o mestre fundador da Mangueira tinha condições para chegar a ser um BOM PINTOR."
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