Artisticamente Correto


Thiago Costa

Tenho acompanhado as matérias e seqüência de artigos que tratam a questão da pixação (com “X” pela ortografia correta dos pixadores), impulsionado pelos recentes ataques a galerias de arte e redutos de grafiteiros de São Paulo, quebrando um respeito mútuo e silencioso que sempre houve entre as duas posses, ambas pertencentes por associação ao movimento cultural e social hip-hop, difundido a partir da década de 70.


As regras ideológicas entre grafiteiros e pixadores foram quebradas a partir do momento que grafiteiros passaram a comercializar suas obras em ambientes formais, negando o que seria então uma arte “subversiva”, marginal, e verdadeiramente democrática, daí se deu à revolta. Porém uma coisa me tem chamado a atenção, a forma como os olhares da mídia vem tratando o assunto, muitas vezes simplista e sem profundidade no tema, deturpando conceitos implícitos nesses movimentos culturais artísticos e de classe, desconsiderando fatores sociais ao tema e resumindo-o simplesmente a questões estéticas, principalmente no que diz respeito ao “pixo”.

Primeiramente é preciso construir parâmetros e distinguir os grupos analisados, antes de lhes agregar valores. O sincretismo de culturas sempre antes hostilizadas pode não ser uma tarefa fácil. É preciso esmiuçar muito bem as coisas.

Pois bem, é impossível dissociar uma coisa da outra, já que os dois movimentos fazem parte de um mesmo “rool” de interventores urbanos, que se diferenciam entre outras coisas pelos fatores estéticos de suas garatujas, mas que em comum retiram do caos suas fontes de inspiração. Além do mais, o graffiti (com dois éfes e “i” pela gramática italiana), apontado como uma forma de acabar, inibir e até reeducar pixadores, ainda é uma arte ilegal do ponto de vista jurídico, atentado contra o patrimônio público e crime ambiental, assim como a pixação, ou seja, grafitar, apesar de “belo” e na “moda”, ainda é crime em boa parte do mundo. Justamente por isso, por ser ilegal e questionar a propriedade privada e o patrimônio público, que o graffiti e a estética casual e representativa do “pixo” vêm conquistando as grandes galerias do mundo, talvez por estarem enfastiados com a arte formal, que hoje pode ser a busca pelo “não formal”. Uma coisa é certa, os dois tipos de manifestação visual se constituem e se baseiam num tipo de texto imagético verdadeiramente democrático, onde qualquer transeunte pode interagir com os arabescos de um pseudônimo, apreciar, ou repudiar, interagir.

Apesar de o graffiti estar em ascensão e participando do seleto grupo de museus e galerias de arte de todo o mundo, grafiteiros concordam que “graffiti” é democrático, portanto só pode ser caracterizado graffiti a pintura inserida nas ruas, independente do material utilizado pelo intervencionista desde que obedeça a calculada desordem estética característica. Portanto, o que está em galerias de arte, fechado em quatro paredes, não pode ser considerado graffiti, por estar limitando e selecionando classes de espectadores, essas se misturam as demais pinturas de outros artistas, obras que estão à venda para o próprio sustento, preços salgados ou não, o grafiteiro que expõe em galerias e vende seu trabalho e sua criatividade é o mesmo que muda a paisagem cinza dos grandes centros de forma totalmente voluntária e com altos gastos em material, a troco de ver num espaço não cedido, a releitura e construção do contemporâneo misturado à população, muitas vezes sem nenhum tipo de autorização, e ajudando a difundir os valores aprendidos na rua. O “pixo” parte de anônimos que arriscam a vida entre pontes e viadutos, desafia as leis da boa vizinhança, a “boa educação”, e não pedem licença pra deixarem suas marcas nas paredes, “quanto mais alto o pico melhor”, quanto mais arriscado, mais respeitada será a posse. Muitas vezes correndo de cães, da polícia, tudo para se fazer respeitado, para ser notado, para chamar a atenção com letras e símbolos que muitas vezes nem passou pela grade curricular de artistas plásticos bem conceituados, códigos entendidos somente por aqueles que promovem este tipo de interação com a cidade, uma visão contestadora e crítica dos modos de se enxergar a sociedade contemporânea, e que tem seus primeiros indícios na Grécia antiga em situações de euforia da população, passando pela idade média, padres usavam uma espécie de líquido betuminoso para desmoralizar outros padres de outros mosteiros. O quão famoso ficaram os pixos do lado ocidental do muro de Berlim, e quantas idéias ficaram cravadas na história pelas mãos de anônimos.

Por todas essas considerações, submeter o tema dessas manifestações culturais contemporâneas, e lançar raízes com base puramente nas questões estéticas e comparativas a outras formas de representação gráfica, resumindo todo um movimento artístico baseado em preceitos sociais, e limitando-os ao que consideramos “belo”, é negar toda uma gama de transformações que estão acontecendo na sociedade, e nas artes pelas mãos de pessoas que se dedicam ao sentimento de honra implícito em forma de uma arte subversiva e subjugada, que não tem o pictórico como elemento de criação, mas sim as transformações sócias principalmente, deturpada capilarmente sem reconhecer a importância e complexidade desses grupos. “o graffiti só é perigoso para três tipos de gente: os políticos, os publicitários e os grafiteiros”, tanto o pixo quanto o graffiti, estão aparecendo para quebrar paradigmas, para fazer refletir e incomodar na sua essência, para forçar pessoas a interagirem umas com as outras, para puxá-las pelo braço e forçá-las a ver uma mancha incolor, porém indelével no tecido social, fazer com que não seja tedioso esperar um ônibus, ou enxergar uma paisagem no fundo de um terreno baldio, quebrar a rotina, e acima de tudo, surpreender. Não encoste aí, a tinta está fresca.

Thiago Costa, graffiteiro,membro da coordenação municipal da Nação Hip-Hop Brasil de Marília




*Especial Hip-Hop, Espaço para convidados especiais do Hip-Hop a lápis.

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