Um sacerdote africano do século 19
O babalaô baiano teve mais sorte que o tataravô de Michelle Obama, pois ganhou túmulo conhecido |
SÓ PODE ter sido trabalho de santo. Na semana em que Barack Obama elegeu-se presidente dos Estados Unidos, chegou às livrarias no Brasil "Domingos Sodré - Um Sacerdote Africano", do professor João José Reis autor do magistral trabalho sobre a revolta de 1835 dos escravos malês.
O livro conta a história da vida e da prisão de um sacerdote do candomblé que vivia em Salvador na segunda metade do século 19.
Vizinho de Castro Alves, foi acusado de feitiçaria e receptação de objetos roubados. Vestiu o uniforme de veterano da Guerra da Independência para ser levado à cadeia. Ficou cinco dias na cana e morreu em 1887, com uns 90 anos de idade.
Se a vida dos barões desfila em discursos, festas e panegíricos de um império de macaquice, a dos escravos sobrevive nos inquéritos policiais, nos arquivos eclesiásticos e, em alguns casos, nos inventários. Esse foi o mundo de Sodré desenterrado por Reis. A grandeza do trabalho está na reconstrução da vida e da cultura dos negros de Salvador. O professor teve paciência e sorte, pois apesar de tudo o sacerdote deixou mais rastro que Jim Robinson, o tataravô de Michelle Obama, que nem túmulo tem.
Domingos nasceu na Nigéria nos últimos anos do século 18 e chegou escravizado a Salvador no início do Oitocentos. Um viajante descreveu o movimento da cidade à época: "Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carregaé negro".
Alforriado em 1836, Domingos viveu num sobrado da ladeira de Santa Tereza. Ao longo da vida comprou, vendeu e alforriou seis escravos. Lá foi preso, acusado de ser "o principal da ordem dos sortilégios e feitiços". Na sua casa foram confiscados objetos de culto, búzios e um exu. Entre as mágicas, sempre demonizadas pela imprensa, estavam receitas para "amansar patrão". (Um chocalho com ervas maceradas e um dente de onça, numa composição benigna, ou arsênico, na maligna.)
Além dos rituais, Domingos foi um operador da "juntas de alforria", uma caixa de poupança mantida pelos escravos. Eram fundos alimentados por contribuições semanais que complementavam a compra da liberdade.
Quando o negro sacava acima dos seus depósitos, ressarcia a junta com juros de 20% ao ano. Quitada a dívida, o alforriado podia continuar na junta, como investidor.
No Brasil do século 19 o preconceito e a violência da escravidão eram apenas uma parte da paisagem. Havia ainda restrições à propriedade e ao trabalho, bem como um sistema tributário concebido para escorchar os negros livres. Os sobrados onde viviam os libertos eram chamados de "quilombos".
A arqueologia de Reis socorre o Brasil do século 21, ensinando-o a olhar para o do 19. Felizmente, a história de hoje é conhecida em tempo real. A repórter Márcia Vieira revelou a existência de uma tese de doutorado da professora Andréia Clapp Salvador, da PUC-Rio, com uma comovente descrição das alegrias e vicissitudes dos alunos que entraram naquela universidade com o benefício de uma política de ação afirmativa. Alguns deles moravam longe e alugaram uma quitinete na vizinhança. Nela chegaram a pernoitar dez estudantes. Dividiam a comida do bandejão, as ofertas de emprego e os livros didáticos.
Tomara que a história dos negros da PUC não demore mais de um século para ser contada em livro.
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