Um outro mundo é possível


O pensamento de Milton Santos devolve-nos a esperança na construção de um mundo mais humano e serve de antídoto à crueza dos tempos atuais e à descrença nos valores de uma história verdadeiramente humana
Péricles Cunha, Pesquisador independente, é mestre em Lingüística (Unicamp)
Nestes tempos cruéis em que vivemos, quando vemos os valores humanos tradicionais sendo desconsiderados ou invertidos, as instituições sendo arrastadas à podridão moral e ética, a representação política desacreditada por gangues de malfeitores que nela se instalaram, os políticos se assemelhando a assaltantes, apropriandose dos dinheiros públicos e usando os mandatos para subtrair-se à aplicação do código criminal, atingindo até mesmo as universidades, onde quadrilhas se instalaram nos departamentos, gerindo-os como um mau executivo de equivocada empresa privada (que não tiveram a competência de criá-las no espaço apropriado das cidades), e a reitoria, destituída de sua magnificência pelo afastamento de seus valores, espelhando-se nos políticos, pratica os mesmos crimes, furtando- se à aplicação das leis, e cinicamente defendendo a naturalidade de seus malfeitos. Na esfera privada, refletindo as elites pais encarceram ou assassinam filhos, por ciúmes ou por qualquer outro motivo fútil, filhos assassinam pais, por cobiça financeira ou outra banalidade qualquer. Enfim, nestes tempos em que, por uma política globalmente radical de redução a um ‘pensamento único’, da complexidade - as naturais e necessárias multiplicidade e diversidade - assistimos à tentativa de, pela exclusão do(s) contrário(s), se engessar a história e finalizar (ou será ‘deletar’) o ‘homem’. Tudo isto vem desabando sobre nós, tornando-nos, conseqüentemente, descrentes quanto à possibilidade da existência de qualquer futuro.

Foi neste exato momento que, por uma dádiva fraterna de um dos meus irmãos (sim, ainda existem irmãos fraternos), me chegou às mãos um livro(1) de um dos mais notáveis intelectuais brasileiros de nosso tempo (sim, eles ainda existem, embora devam ser procurados com lupas). Trata-se de uma coletânea de artigos do geógrafo Milton Santos (1926-2001), sanfranciscano (de Brotas de Macaúbas), como Assis Valente, Darcy Ribeiro, João Gilberto, Adélia Prado, para citar só os que me vieram de imediato à memória. O Professor Milton Santos teve a sua formação básica na Bahia (bacharel em Direito, 1948) e obteve o título de Doutor em Geografia em Estrasburgo, França (1958), de onde retornou à Bahia para dar aulas na Universidade Católica e na UFBa. Da Bahia, saiu para ganhar o mundo, tendo sido professor em várias universidades européias, americanas do Norte e do Sul e africanas. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa das Universidades de Toulouse (1980), Buenos Aires (1992) e Barcelona (1996) e foi Professor Emérito da USP-FFLCH (1997), tendo conquistado ainda, em 1994, o maior prêmio internacional de Geografia, o Vautrin Lud, considerado o ‘Nobel’ de Geografia. Ao retornar ao Brasil deu aulas na USP, UFRJ e de novo na UFBa. Como cidadão do Mundo, no entanto, jamais perdeu a consciência de pertencer a um território e a uma história particulares, o patamar de onde descortinava o Mundo. Este livro, apesar de seu diagnóstico cruel, mas lúcido, da realidade brasileira, nos reacende a esperança no homem e, nos devolvendo a crença na construção humana de um futuro, faz renascer o interesse pela política como ‘o exercício de uma ação ou defesa de uma idéia destinada a mudar o curso da história’ (p.105). Destaca-se, neste livro, que é uma leitura do mundo atual marcada por dicotomias (na verdade, o jogo de tese/antítese que faz caminhar o seu pensamento), a sua capacidade de, perscrutando o presente, um perverso presente, delinear com uma clareza ofuscante as grandes linhas do futuro, a possibilidade de um amanhã virtuoso. A sua serena lucidez, certeira e fulminante no equacionamento dos problemas, na identificação dos atores e cenários (‘situações’) em que se dá o embate contemporâneo da humanidade, na explicitação do que, de fato, importa, é que vai lhe possibilitar antecipar o futuro.

Dono da língua, como hoje raramente se vê, sobretudo nos alunos da Universidade, mesmo aqueles ditos ‘das Letras’, o seu texto nos permite ainda a fruição estética: a simplicidade aparente de sua escrita traduz uma elaboração rebuscada, escondida no seu estilo limpo e enxuto.

Os textos reunidos são artigos publicados na Folha de S, Paulo nos anos 80 e 90 do século passado e nos dois primeiros anos deste novo século XXI (2) O livro é aberto com uma apresentação de Wagner Costa Ribeiro, Professor da USP (‘Milton Santos: do território à cidadania’), e fecha com um ensaio de Carlos Walter Porto Gonçalves, professor da Universidade Federal Fluminense (‘Milton Santos: ciência, ética e responsabilidade social’), este último, uma ótima introdução ao seu pensamento. Dividido em três partes: 1. O país distorcido, 2. Por uma globalização mais humana e 3. Os deficientes cívicos, todos, títulos de artigos aí incluídos, e contendo em apêndice, uma bibliografia de livros, artigos e entrevistas recentes do autor, (3) o livro aborda vários sub-temas, centrados nos três temas do subtítulo. Na Parte 1, encontramos textos referentes a intervenções nos debates por ocasião da Constituinte, a críticas ao modelo de inserção do país ao mundo globalizado, a sua visão da Universidade, e da importância da pesquisa científica e tecnológica, o papel do intelectual, a necessidade da preservação da memória nacional e a questão da indústria cultural. Na Parte 2, os textos abordam a situação da África nos anos 80, o caráter estrutural (e não mais conjuntural) das crises no mundo globalizado, a incompletude da redemocratização na América Latina (a partir do caso da Venezuela), a cidadania, o papel do Estado e do ‘território’. Na Parte 3, explorando o tema da desigualdade, trata das cidades e da cidadania, do recomeço da história, do papel da imprensa, da questão dos preconceitos, do que significa ser negro no Brasil, do uso político das estatísticas e faz a defesa da lentidão, diante da velocidade imposta pelos tempos atuais.

Impossibilitado de fazer aqui uma leitura exaustiva dos artigos, até mesmo pela limitação do espaço, vou traçar em linhas gerais o percurso de seu pensamento em relação a um ou dois temas, partindo de seu diagnóstico da globalização até as alternativas que a ela se pode contrapor.

A globalização é vista pelo autor como o resultado de um longo processo de internacionalização, empreendido inicialmente pelos países europeus e, mais recentemente, a eles se juntando os EUA. Milton Santos situa o início desse processo no Mercantilismo dos séc’s. XVII e XVIII, a sua expansão, com a industrialização do séc. XIX, e a sua intensificação e ampliação nos últimos tempos, quando adquire novas feições: o mundo inteiro passa a se envolver em todo tipo de troca (técnica, comercial, financeira, cultural...), abrindo, com isso, um novo período na história da humanidade. O desenvolvimento científico, diz ele, conduzindo o progresso técnico voltado para a produção, faz com que o planeta seja dominado por um único sistema técnico, ‘indispensável à produção, ao intercâmbio, e fundamento do consumo’ (p.79). E continua: com a instantaneidade das trocas informacionais, a produção e a informação se tornam globalizadas, fazendo emergir um lucro em escala mundial que, acionado pelas firmas globais (as ‘multinacionais’), passa a ser o verdadeiro motor da atividade econômica. A concorrência entre os principais agentes econômicos se acirra (a ‘competitividade’). Os lugares (locus da multidimensionalidade da vida, da convivência do diverso) tendem a ser globais: ‘o que acontece em cada um deles tem relação com o que acontece a todos os demais’ (p.79). Isso redunda na ilusão de vivermos num mundo sem fronteiras (a ‘aldeia global’). Mas (aqui incide a sua crítica fundamental à globalização), por um lado, ‘essas relações globais estão restritas a um número muito reduzido de agentes: a grandes bancos e empresas transnacionais, alguns Estados, as grandes organizações internacionais’ (p. 80), e por outro, mais desigualdades são produzidas: crescem o desemprego, a pobreza, a fome, a insegurança, a difusão das drogas, as doenças, as epidemias dos 3º. e 4º. mundos. Com isso, fragmenta- se o mundo, que parece ‘girar sem destino’, ampliam-se as fraturas sociais, e as possibilidades oferecidas pelas conquistas científicas e técnicas, que deveriam estar a serviço da humanidade, não estão sendo adequadamente usadas em seu benefício, decorrendo daí o caráter perverso desta globalização.

Haveria alguma alternativa a isto? Sim, diz o Mestre. E é aí que o seu pensamento, alcançando a utopia, abre as perspectivas que nos ajudam a viver. É possível, sim, um mundo solidário, que produza mais alimentos, mais empregos, mais mão-de-obra, que reduza as doenças e a mortalidade, que amplie um intercâmbio pacífico (sem a ‘beliculosidade da competitividade’ ), um mundo de bem estar, onde os homens serão felizes, enfim, um outro tipo de globalização. E por que isso é hoje possível? Acompanhemos o seu raciocínio. Já que a existência de uma técnica e de uma política planetárias ‘autorizam uma leitura geral, específica, filosófica e prática de cada ponto da terra’ e a emergência de uma universalidade empírica contribui para a formulação de idéias que nos esclareçam o que são atualmente o mundo e os lugares. (p. 153), pode-se então dizer que um novo mundo é criado como uma ‘realidade histórica unitária, [planetária], ainda que extremamente diversificado’. Assim, os traços comuns da constituição técnica desse mundo e a existência do lucro em escala mundial como o único motor das ações hegemônicas, vai nos permitir datá-lo também de forma única: um salto de qualidade se produz nesse momento. Esses dados associados à generalização da informação é o que vão assegurar a comunhão de cada lugar com todos os outros. Para alguns, essas características são apenas novas faces do surrado ‘imperialismo’; para outros indicam apenas o ‘fim da história’; para o nosso Mestre, ao contrário, trata-se do seu verdadeiro início, o inicio de uma história verdadeiramente humana, história da humanidade como um todo, e não apenas de lugares regiões, países, quando muito, continentes (impérios).

Não mais ‘a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes’ (p. 154), co-incidindo, assim, a produção dessa história universal e a relativa liberação do homem em relação à natureza, a tão esperada superação do reino da necessidade. Além disso, ‘os materiais responsáveis pelas realizações preponderantes são cada vez mais objetos materiais manufaturados, e não mais matérias primas naturais’. Isto faz com que esta era possa ser chamada de ‘era da inteligência’. Uma era em que o homem ‘fabrica a natureza ou lhe atribui valor e sentido por meio de suas ações já realizadas, em curso ou meramente imaginadas’(p. 154). Entretanto, a mesma materialidade que permite criar um mundo ‘confuso e perverso’ vai permitir a construção de um mundo mais humano. Para isso, afirma, bastaria que se completassem as duas grandes mutações em curso na espécie humana: a mutação tecnológica (a emergência das técnicas da informação) e a mutação filosófica (a atribuição de um novo sentido à existência de cada pessoa e também do planeta).

Na era que vivemos, prossegue, o homem descobre novas forças, na mesma medida em que o meioambiente se torna menos aleatório, já que cada vez menos natural, a previsibilidade e a eficácia das ações aumentam, as escolhas se ampliam e se diversificam ao se combinar adequadamente a técnica e a política, enfim, o mundo se aproxima de cada homem, que passa a ter a certeza e a consciência de ser mundo, de estar no mundo. Por outro lado, grandes migrações tornam as cidades uma ‘humanidade misturada’, como se o mundo aí se instalasse, colaborando, pelo entrechoque de idéias e costumes (pela ´práxis coletiva’), para uma renovação contínua da produção do entendimento e da crítica da existência. São pois essas ricas dialéticas da vida nos lugares que vão permitir a proposição e o exercício de uma nova política. Desse modo, ‘a história do homem sobre a terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e espirituais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória.’ (p.155).

Haveria muito mais a dizer sobre ‘O país distorcido’, e sobre o autor, tais como a sua posição diante do problema racial brasileiro, as suas distinções entre causa e contexto, entre informação e comunicação, os seus conceitos de espaço geográfico e território, cidadania, formação sócio-espacial, verticalidades e horizontalidades, estrutura, processo, forma e função, a sua metáfora das rugosidades, a sua sugestão de um programa de governo para as cidades brasileiras, e muito mais, inclusive sobre o seu interessante conceito de “olhar distorcido’, que explica e esclarece o seu lugar de ver (4), o que não caberia neste espaço. Portanto, as considerações aqui esboçadas me fazem recomendar vivamente a leitura desse livro, que é uma porta aberta para a sua obra, além de, creio eu, provocar no leitor, como fez em mim, a restauração de suas forças. Trazendo de volta a fé na ação política do animal humano, esse livro faz renascer as esperanças, reinstalando o futuro em seus devidos lugares: lá, como o objetivo final a ser alcançado, onde ele nos aguarda na dependência de nossas ações anteriores; e cá, como sonhos, desejos, intenções e emoções, os criadores, catalisadores e mobilizadores das ações presentes que, só elas e na qualidade delas, nos conduziriam aos estados desejados.

Para finalizar, deixemos a palavra com o Mestre: ‘...a globalização atual não é irreversível. Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana, finalmente, está começando.’ (p. 156). (5)

(1) SANTOS, Milton. (2001) O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. Org. Apres. e notas de Wagner Costa Ribeiro; ensaio de Carlos Walter Porto Gonçalves. São Paulo: Publifolha
(2) o autor faleceu em 24 de junho de 2001, escrevendo e publicando até as vésperas de sua morte.
(3) Senti falta das referências bibliográficas na Apresentação e no ensaio final.
(4) Cf. o conceito de ‘redução sociológica’ de Guerreiro Ramos.
(5) A construção deste textos e baseou principalmente em dois artigos do Prof. Milton Santos ‘Por uma globalização mais humana’ e ‘A reconstrução da história’. As informações sobre o autor e a sua obra foram extraídas à ‘Apresentação’ do Prof. Wagner Costa Ribeiro e ao ensaio final do Prof. Carlos Walter Pinto Gonçalves.

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