Mandões, racismo e democracia


Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br
“Passamos por este mundo apenas uma vez. Poucas tragédias podem ser maiores que a atrofia da vida; poucas injustiças podem ser mais profundas do que ser privado da oportunidade de competir, ou mesmo de ter esperança, por causa da imposição de um limite externo, mas que se tenta passar por interno”.

O fragmento acima, de Stephen Jay Gould, é parte de uma reflexão sobre os limites impostos a seres humanos pelo determinismo biológico e as teorias racistas (“A Falsa Medida do Homem”, Martins Fontes, 1991). É dessa perspectiva, a da caça, que saudamos aqui o Dia Internacional da Democracia, comemorado pela primeira vez na segunda-feira 15 de setembro de 2008.

A data lamentavelmente teve pouca repercussão entre nós. O Brasil, em 2000, em Genebra, num evento sobre Direitos Humanos na ONU, apresentou uma moção declarando a incompatibilidade entre democracia e racismo. Ou seja, ninguém deveria ser privado da oportunidade de competir, em razão da cor da pele. Eu escrevi então num artigo (“O desafio de controlar a própria explosão”, in: “Entre Áfricas e Brasis”, 2001) que a declaração brasileira não passava de “uma mesura diplomática, uma afetação hipócrita, que a leve inclinação do busto tinha o mérito de deixar o rabo a descoberto.”

Salvemos, no entanto, nossa democracia: um general-de-exército, incomodado com o rumo dos interrogatórios dos militares envolvidos com a chacina do Morro da Providência, pediu o afastamento do juiz federal responsável pela condução do processo (FSP, 06.09.08, p.C9). Pediu e levou. Salve, general, salve.

Salvemos também nossos zeladores da Segurança Interna, servidores da Abin, pelas horas que consomem acompanhando nossas marchas, reuniões, telefonemas, jornais (FSP, 06.09.08, p. A9). Salve, zelador, salve.

Por falar em zelador, lembrei-me de uma cena de “Estorvo”, de Chico Buarque (Companhia das Letras, 1991).

O pai do personagem que narra o romance (p. 92), incomodado com o rádio do porteiro do edifício que, no momento da cena, ouvia o horóscopo, “mandou o porteiro desligar aquela porcaria. E disse que nunca se viu empregado ligar para astrologia, ainda por cima crioulo, que nem signo tem. O porteiro achou aquilo a coisa mais engraçada. Vendeu o rádio e passou meses rindo muito e repetindo ‘crioulo não tem signo, crioulo não tem signo‘.”

Alguns intelectuais têm afirmado que sofrer é uma coisa, entender é outra. Começaram com uma historinha de ‘branco mais preto do Brasil’ e terminaram com um ‘chega pra lá, meu preto básico’. Da varanda da casa grande, falando às vezes um iorubá de raiz, eles acrescentam não sem algum carinho: ‘você não entende mesmo nada disso, meu pretinho’.

A submissão do negro, cujo destino é decidido por ordens emanadas de seres superiores, fixados em constelações dispostas nos andares acima da portaria, produz nessa gente um gozo todo especial.

Não, não há nada de perverso nisso. É a democracia, meu velho, ao menos a que nos coube vivenciar. Ou melhor, ponha perversão nisso. O general e o pai, mandões e preconceituosos, eles controlam o processo democrático. O juiz obedece, o porteiro obedece. O porteiro é negro, logo obedece por limitações intrínsecas, segundo diversas autoridades; quanto ao juiz, não se sabe. Mas deve ser porque ele tem juízo, não é mesmo?

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