De bem com a África

Na esperança de ver o Brasil dar o devido valor a homens e mulheres que ajudaram a construir o país, três mulheres dedicam a vida a promover a consciência negra numa escola da periferia
Luciane Evans
Juarez Rodrigues/EM/D.A Press - 19/11/2008

Elas não silenciaram diante das pressões de colegas de trabalho, reagiram. Recusaram a aceitar as antigas didáticas de sala de aula, propuseram novas. Questionaram metodologias e ousaram nas mudanças. Na tentativa de não repetir o passado, estão mudando o futuro caráter de 270 crianças. Geni Ferreira de Freitas, Luzia de Campos Casas e Ednéia Aparecida Dias são educadoras da Escola Municipal Monteiro Lobato, no Bairro São Marcos, na Região Nordeste de Belo Horizonte. Diariamente, ensinam aos alunos da escola a cultura afro-descendente, usando livros, jogos, brincadeiras, poemas e histórias. As três mulheres, bem preparadas, sonham em ver o Brasil, daqui a alguns anos, dar o devido valor àqueles que ajudaram a construir o país: os negros.

Juarez Rodrigues/EM/D.A Press - 19/11/2008
Geni Ferreira de Freitas (E), Ednéia Aparecida Dias e Luzia de Campos Casas, diretora e professoras de quase 300 crianças na escola do bairro São Marcos

A lei que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, de nº 10.639, entrou em vigor em 2003. Dois anos mais tarde, foi fundada a Escola Municipal Monteiro Lobato, inteiramente de acordo com o que propõe a lei federal. “O tema relações étnicas raciais faz parte de todas as aulas”, contou a vice-diretora Geni Ferreira de Freitas. “Os professores que lidam com a questão brincam, lêem livros, exibem vídeos e promovem discussões com crianças de 3 a 9 anos.”

Arquivo/Estado de Minas
Poeta simbolista João da Cruz e Sousa, nascido em Santa Catarina, filho de escravos alforriados, autor dos poemas Missal e Broquéis e nome maior da literatura brasileira
Em 2006, ano seguinte ao da fundação da escola, as três educadoras aprimoraram seus conhecimentos no curso de pós-graduação História da África e cultura afro-brasileira, da PUC Minas. Aprenderam muito sobre o assunto e puderam aprofundar ainda mais o tema. Geni e Ednéia fizeram o curso porque lhes interessava muito tema. Os motivos de Luzia foram outros: “A minha mãe é branca. Na família dela há fotografias de antepassados e as histórias são vivas. Ao contrário de meu pai, que é negro, e não sei nada do passado de meus avós e bisavós paternos. Isso sempre me incomodou: é como se a cultura negra não tivesse memória no Brasil”.

SUCESSO As aulas começaram a ganhar força e a escola, mais material didático. São, hoje, mais de 100 livros sobre cultura afro-descendente, que foram doados pela prefeitura da capital. “Naquele ano de 2005, ganhamos o prêmio Paulo Freire, que é voltado para projetos educacionais. Ficamos em 2º lugar pela nossa metodologia de ensino em uma escola de tempo integral. Foi mais um incentivo e a certeza de que estávamos no caminho certo”, disse Geni.

Marc Ferrez/Divulgacao
Joaquim Maria Machado de Assis, carioca, neto de escravos alforriados, poeta, romancista, dramaturgo, contista, jornalista e mundialmente conhecido e admirado
Passaram-se três anos e, hoje, a Monteiro Lobato tem conquistado o seu melhor prêmio: o respeito das crianças pelas diferentes raças. “O que se percebe é que os alunos têm orgulho de se declarar negro. Eles se olham no espelho, sentem o cabelo e têm prazer de se ver. É o valor da auto-imagem”, garante Ednéia, que lembra que na sua época estudantil, assim como Geni, o racismo era mais forte do que é hoje. “Lembro que os livros didáticos retratavam o afro-descendente com estereótipos maldosos e preconceituosos. Havia obras que diziam que Deus, quando criou os humanos, dava banho em cada um deles. Porém, um dia acabou a água e, assim, nasceu o negro”, conta Geni, que lamenta que esse tipo de conteúdo, mesmo nos dias atuais, ainda persistem. “Por mais incrível que pareça, ainda há instituições de ensino que ensinam isso aos alunos.”

Mas esse passado passa longe das salas de aulas da Monteiro Lobato. Hoje, as meninas de raças diferentes disputam as bonecas negras da escola. “Estamos quebrando preconceitos, mostrando a riqueza da África e fazendo com que as crianças não tratem as pessoas diferentes por causa do tom de pele delas”, ressalta Ednéia. O orgulho de Luzia é ver os alunos encantados com as informações que recebem. “Quando disse a eles que o mestre Machado de Assis era negro, eles acharam um máximo. O mesmo aconteceu quando conheceram os poemas de Solano Trindade. Conhecimentos que mudam a percepção de mundo dessa garotada, que daqui a alguns anos estará no comando do país”.

Geni concorda e explica: “É na infância que se quebra preconceitos e paradigmas. Certamente, nossos alunos serão adultos diferentes, com outras idéias e sentimentos. A nossa intenção é de que tudo que eles aprenderam aqui seja levado por eles para outros cantos e pessoas”.

ENTRAVES Mesmo com toda a força e luta dessas mulheres para fazer com que as crianças de hoje sejam adultos mais humanos no futuro, elas reconhecem que o racismo e a falta de políticas públicas ainda são entraves para a valorização da cultura negra no Brasil. “Há até mesmo professores que não gostam de abordar o tema porque acreditam que haverá preconceitos dentro da sala de aula, ou educadores que tentam barrar o assunto alegando que não quer causar polêmica. Isso é um absurdo, mas infelizmente acontece”, lamenta Geni.

Luzia reclama que a própria mídia é responsável pelo racismo no país. “Nas telenovelas, o papel dos negros ainda é de estereótipos. Além disso, faltam políticas públicas para inclusão dessa população nos setores de educação, saúde e cultura”, ressalta. Ednéia acredita que as coisas estão mudando. “A própria L ei 10.639 é um avanço, mas é preciso mais”, reclama

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