Comparação entre Brasil e EUA se baseia em caricaturas


Para analista, novo presidente americano pode modificar auto-imagem de brasileiros


NO BRASIL, ASSIM COMO EM PORTO RICO, A IDÉIA DE UM EUA RACISTA EMOLDURAVA UMA AUTO-IMAGEM DE SUPERIORIDADE MORAL

A SEGREGAÇÃO FOI FÁCIL DE COMBATER: ERA UMA INJUSTIÇA EVIDENTE. A DISCRIMINAÇÃO SUTIL É MAIS DIFÍCIL DE SER CONTESTADA


JERRY DÁVILA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Me parece que a essência das relações raciais está na comparação.
Quando eu era menino, em Porto Rico, me ensinaram que na minha ilha não havia discriminação racial: éramos um paraíso onde brancos, negros e todos os que ficavam no meio conviviam tranqüilamente. Podíamos vê-lo na praia, onde se viam casais formados por negros e brancos de mãos dadas. A discriminação racial era um problema do norte, me ensinaram.
Quando minha família se mudou para o norte, compreendi esse problema em primeira mão. Em Porto Rico, eu era branco e de classe alta.
Nos Estados Unidos, era integrante de uma minoria étnica e fazia parte da classe média.
Os administradores do meu colégio novo se negaram a acreditar que um porto-riquenho pudesse estar um ano adiantado em matemática, então me colocaram em aulas remediais, numa trajetória vocacional que me levaria a ser mecânico. Tive sorte por conseguir sair dela.
Anos mais tarde, visitei o Rio de Janeiro pela primeira vez para aprender português, quando fazia meus estudos de pós-graduação. Vivendo em Ipanema, eu ouvia exatamente as mesmas coisas sobre relações raciais que ouvira quando jovem em Porto Rico: aqui não existe racismo; isso é algo que existe no norte. Veja as pessoas na praia etc.
Mas eu tinha justamente dificuldade em conciliar o que me diziam com o que eu via. Era verdade que havia muita interação entre negros e brancos, mas eu via uma hierarquia que estava estampada nos corpos das pessoas de cor, cujo lugar na zona sul do Rio era determinado pelo uniforme que vestiam: a camisa azul do motorista de ônibus, o uniforme branco da babá, o uniforme laranja do gari.

Caricatura
No Brasil, assim como em Porto Rico, a idéia de um Estados Unidos racista emoldurava uma auto-imagem de esclarecimento e superioridade moral. Uma imagem caricata do supremacismo branco e da violência racial naquele país lançava uma sombra que ofuscava a discriminação sistemática e a desigualdade em outras sociedades.
Meu primeiro trabalho de professor "brasilianista" foi em Minnesota, no extremo norte dos EUA. No Norte do país, os centros urbanos eram predominantemente negros, e as áreas suburbanas e rurais eram majoritariamente brancas. Negros e brancos tinham muito pouco contato uns com os outros, diferentemente do Brasil. E, nesse ambiente de separação, os brancos viam o Sul dos Estados Unidos como exemplo de racismo.
Pelo fato de o Norte não ter histórico de segregação, os nortistas se enxergavam como não sendo racistas e como moralmente superiores aos sulistas. Mas não era um ambiente em que os brancos se sentissem à vontade na presença de negros ou vice-versa.
Hoje eu leciono no Sul do país, na Carolina do Norte, um Estado onde houve segregação racial. Paradoxalmente, esses lugares de segregação passada foram e são lugares onde negros e brancos interagem muito mais do que no Norte. Foi essa proximidade que moveu a segregação, estampando uma hierarquia social sobre pessoas que não eram separadas pela geografia, como eram no Norte.
E, paradoxalmente, a segregação levou à criação de instituições paralelas, com grandes contingentes de professores, advogados, corretores de seguros, funerárias e outras atividades profissionais e comerciais exercidas por negros, resultando num grau de ascensão profissional incomum no Norte.
Em aeroportos de cidades como Charlotte e Atlanta, é muito mais comum que no Norte ver cônjuges negros em carros caros, esperando para buscar viajantes a negócios negros, cuja profusão foi gerada primeiramente pelas instituições paralelas e, mais tarde, elevada pela ação afirmativa.
Não pretendo com isso minimizar a violência física e psicológica que a segregação impôs às vidas dos negros no Sul dos EUA nem o drama violento e não-violento da integração racial obrigatória no Sul. Mas o Sul é mais complexo do que sua caricatura difundida em outras regiões dos EUA, da América Latina e do mundo.
A segregação racial foi regional e temporalmente específica. Ela existiu numa região dos Estados Unidos durante oito décadas que culminaram no movimento pelos direitos civis. Mas, como o apartheid, virou sinônimo de racismo. Isso é um problema, porque o foco sobre a discriminação e a desigualdade ostensivas desvia a atenção da realidade mais onipresente da discriminação sutil e informal, que reproduz desigualdades nos EUA, no Brasil, em Porto Rico, na Europa.
A segregação foi fácil de combater: era uma injustiça evidente. A discriminação sutil é mais difícil de ser contestada. Suas características são discretas, normalmente ocultas em outras coisas. Ela existe em valores informais e nas maneiras como as instituições distribuem oportunidades e recompensas. Está presente no vestibular brasileiro e em nossa versão dele, o SAT. E está entremeada em padrões de desigualdade econômica.

Modelo
Ademais, o Sul dos EUA criou o quadro de referência que permitiu que outros, em regiões diferentes dos Estados Unidos e das Américas, se construíssem como comparativamente moralmente superiores e não tomassem consciência e reconhecessem seus próprios padrões de discriminação. A marca da segregação foi tão forte que ela continua a definir o significado do racismo, meio século depois de ter terminado. Ela permitiu não apenas ao Brasil mas a Porto Rico e a Minnesota se construírem como democracias raciais.
O próprio conceito de democracia racial sempre dependeu de uma comparação com o Sul dos EUA para funcionar, de modo que não surpreende que sua ressonância no Brasil tenha perdido força com o fim da segregação nos Estados Unidos. Quando Barack Obama foi eleito, ele conquistou maiorias dos votos em todo o Norte dos EUA. Significativamente, também ganhou em Estados do Sul, como Carolina do Norte, Virgínia e Flórida. Suas vitórias no Sul são um sinal de que, não obstante os legados da segregação, muitos sulistas brancos se dispõem a votar segundo o imperativo de suas carteiras, e não de sua raça.
Isso não muda a realidade da discriminação que perdura no Sul ou no resto dos EUA. Mas desloca o quadro de referência.
Ao longo de quase um século de segregação, e de meio século depois do término dela, os EUA e o Sul do país permaneceram como símbolos de racismo contra os quais, comparativamente, outros povos puderam construir sua superioridade moral.
Agora eleitores do Norte, do Sul, do Meio-Oeste e do Oeste dos Estados Unidos criaram um fato novo contra o qual se podem fazer contraposições. Ao lado do legado do supremacismo branco e da segregação racial, há também a capacidade de eleger um homem negro para presidente.
Isso certamente reposiciona os pontos de comparação.


JERRY DÁVILA , autor de "Diploma de Brancura -Política Social e Racial no Brasil" (ed. Unesp), entre outros, é professor associado de história da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte.

Tradução de CLARA ALLAIN

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