Os Tambores de um quilombo


Em meio a prédios em bairro nobre de Belo Horizonte, comunidade luta para que seus costumes sobrevivam
Bianca Magela Melo, jornalista de Belo Horizonte - MG
Nove anos. Foi o tempo que a comunidade quilombola dos Luizes, na área urbana de Belo Horizonte (MG) levou para ter coragem de tocar seus tambores de novo. Os ensaios do grupo de cultura afro eram comuns desde que a líder comunitária Maria Luzia Sidônio, hoje com 65 anos, era mocinha. No entanto, o constante estranhamento dos vizinhos dos prédios de classe média, as reclamações e os olhares de condenação silenciaram por um tempo o bonito batuque dos Luizes.
No último dia 29 de julho, quando foi comemorada a festa anual de Santana, um grupo de Luizes ousou brincar de tambor ao final da apresentação da guarda de congado de Bom Despacho (interior de Minas). "Fomos reconhecidos pela Fundação Palmares e os tambores são parte de nossa cultura", explica Maria Luzia, referindo-se ao título de comunidade Quilombola, concedido em 25 de novembro de 2004.

A titulação mexeu com a auto-estima dos Luizes. Além dos instrumentos de percussão, eles ganharam da Fundação Palmares máquinas para confecção de roupas. "Pode ser uma alternativa de renda para os jovens", diz. Antes já foi bem diferente, conta a líder: "Todo mundo ria quando eu falava que era quilombola."
O grupo que representa os interesses da comunidade agora tem nome: Associação de Quilombos Luizes N´tamimawsi, que significa um só coração na língua Eve Von, da República de Benin, conforme ensina a presidente Maria Luzia. De acordo com ela, os habitantes de Benin têm servido ao Brasil como fonte de danças e cantos de religiões de matriz africana.

O núcleo do quilombo está localizado em uma área de quatro mil metros quadrados no bairro Grajaú, zona nobre da capital mineira. Cerca de 120 pessoas vivem no local de casas simples, chão de terra e grandes árvores. De lá, a vista dos Luizes alcança compridos prédios por todos os lados. "Estão todos na área que um dia foi do quilombo", observa Maria Luzia.

ÁREA INICIAL EM BELO HORIZONTE ERA DE 18 MIL METROS QUADRADOS
Segundo consta nos registros dos Luizes, o terreno inicial ocupado pelos escravos fugidos do domínio do senhor de escravos Antônio Luiz Simões, era superior a 18 mil metros quadrados nas proximidades do bairro Grajaú. Considerando todo o espaço encampado na época pelos Luizes, a área, conta Maria Luzia, seria de 624 mil metros quadrados, incluindo uma grande extensão que liga Belo Horizonte ao município vizinho de Nova Lima.

Os Luizes já perderam a conta do número de advogados contratados sem que medidas fossem tomadas. "Vimos nosso patrimônio ser ocupado bem próximo às nossas casas." Há outros cerca de 200 descendentes da mesma família espalhados em outras regiões da cidade. Na Secretaria de Regulação Urbana da Prefeitura de Belo Horizonte, a informação é a de que todas as construtoras que deram entrada para obter licença de realização de obras nas imediações, tinham os documentos que comprovavam posse do imóvel.

Maria Luzia revela que a escritura em poder dos Luizes foi ignorada. O documento foi emitido pelo cartório de imóveis da cidade de Sabará em 1895, dois anos antes de Belo Horizonte ser reconhecida como município. "Foi esta luta a vida toda. Diziam (os construtores) que o terreno era deles e ficava aquela história de escritura sobre escritura e a gente sempre procurando a prefeitura sem conseguir nada", desabafa.

Em 2002, a preparação do terreno para erguer mais um prédio no bairro, levou junto o centro cultural da comunidade. "Até hoje não conseguimos reconstruí-lo e ficamos com a sensação de impotência." Vontade de desistir não faltou, mas eles prosseguiram. Mesmo quando a tia de Maria Luzia morreu assassinada dentro da própria casa. "Achei muito desaforo e passei a fazer o que ela fazia."

Seppir — Uma vez identificadas as áreas, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial oferece assistência para as comunidades remanescentes de quilombos. "Auxiliamos com apoio jurídico e acompanhamos qualquer ameaça ou dificuldade", explica a diretora de programas da subsecretaria de políticas para a comunidade, ligada à Seppir, Maria Palmira da Silva. Eles têm cadastrados cerca de três mil comunidades quilombolas no país. "A maioria está totalmente isolada do contato urbano, mas, assim como os Luizes, em Belo Horizonte, há exemplos como o da família Silva, no Rio Grande do Sul."

MISSA CONGA
As roupas muito brancas dos congadeiros de Bom Despacho salientam os adornos coloridos e a cor da pele que resplandece com o sol do final do dia. A dona de casa Jorgina Nunes Guimarães, da comunidade dos Luizes, era uma das espectadoras atentas à apresentação. Está feliz com seus dois filhos gêmeos de 13 anos, que estão aprendendo a tocar tambor. "É uma tradição que nunca deveria ter parado. Sem batuque parece que está faltando alguma coisa na vida da gente."

A festa dos Luizes tem missa conga com presença de padre e com todo ritual, mas no lugar das músicas tradicionais da igreja católica, entram os cânticos africanos. "Negro sofria. Negro Chorava. Negro Rezava. Lá na Senzala. Ô ô meu senhor ô ô." Tradição trazida pelos escravos africanos e espalhada nas terras do ouro, o Congado é ainda hoje muito presente em praticamente todas as regiões de Minas Gerais. Além das danças e da música, as festas sempre têm muita fartura de comidas características: feijão tropeiro, canjica, arroz doce, pipoca e frutas. "Cada família prepara um prato ou mais e não falta boa comida", explica Luiza Sidônio, irmã da organizadora da festa.

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