O livro Aleijadinho e o aeroplano – O paraíso barroco e a construção do herói colonial, de Guiomar de Grammont, está dando o que falar. E não é para menos. A autora estuda, com profundidade – e utilização de elementos da história, literatura, sociologia, artes plásticas e filosofia – a vida e obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, considerado o mais importante artista brasileiro de todos os tempos. Livro rico em informações, nem por isso está defeso de polêmicas. Entre as questões que podem gerar controvérsias estão a validação da imagem atribuída ao artista em retrato que se tornou oficial; a autoria de todas as obras a ele atribuídas; a formação como arquiteto; e até a origem familiar. Na verdade, Guiomar não ataca o homem, mas o mito construído em torno dele.
O trabalho de Guiomar de Grammont é um exercício de escavação. A autora analisa as várias representações firmadas acerca do artista Aleijadinho, desde a primeira biografia, de autoria de Rodrigo Ferreira Bretas, publicada em 1858, procurando desconstruir, desmontar o herói para ver o que ele indica. Na análise, vai ficando claro que o Aleijadinho responde aos interesses das idéias do tempo daqueles que o retrataram: pode ser o herói barroco, romântico e modernista. Em alguns momentos é destacado seu heroísmo em lutar contra as circunstâncias da condição social e da doença; em outros, o que ganha sentido são as escolhas estéticas nacionalistas.
Autor de algumas das mais belas esculturas da arte brasileira (não é intenção da autora negar a qualidade do trabalho do artista), Aleijadinho foi ele mesmo uma imagem feita do trabalho de ideólogos interessados em criar um mito que respondesse pelo que se chama de identidade nacional. Uma imagem modelada para servir aos interesses políticos de cada época. Em cada capítulo do livro, Guiomar de Grammont analisa um momento desse processo lento de feitura do personagem. O resultado, ainda que não possa se arrogar à verdade sobre o homem e o artista, ajuda a desfazer os equívocos que cercam o mito.
BARROCO Assim, no primeiro capítulo é estudada a concepção de barroco mineiro, como um estilo que daria conta de incorporar as influências externas e refazê-las a partir de um olhar próprio, como se o artista barroco (entre eles Aleijadinho) tivesse o engenho e a militância capazes de subverter a cultura do colonizador em nome de uma visão singular de mundo. O segundo capítulo analisa as biografias de Aleijadinho, numa trajetória que cria, no modelo do romantismo do século 19, um artista em que a força da individualidade e o nacionalismo atávico definem sua existência.
A autora convoca ainda, no capítulo seguinte, o testemunho dos viajantes e dos primeiros modernistas, sobretudo Mário de Andrade, colocando em confronto visões que apelam para o exotismo (da parte dos europeus) e para a redescoberta das raízes, com destaque para a miscigenação (conforme defendida pelos modernistas). O quarto capítulo de Aleijadinho e o aeroplano problematiza a forma como o artista foi se tornando detentor de uma obra por demais vasta, tendo como convenções de atribuição de autoria conceitos e práticas de tempos e lugares diferentes. Mesmo os estudos estilísticos, na avaliação da autora, acabam por tamponar alguns vácuos de atribuição, em nome da mitologia de um artista sempre genial e prolífico.
O último capítulo discute a questão da originalidade de Aleijadinho, ou seja, como a obra do escultor dialoga com a história da arte de seu tempo, responde a elementos canônicos ou emula trabalhos europeus. O mito do autodidata genial, doente e discriminado, acaba por sobrepor até mesmo aos parâmetros estéticos, mais uma vez em nome da defesa de uma visão nacionalista e autóctone, mesmo com todas as evidências dadas pela semelhança da arte mineira com a européia.
Juninho Mota/Reprodução |
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Aleijadinho em sua imagem mais conhecida, embora contestada |
MITO O título do livro, na curiosa e extemporânea comparação entre o artista e o aeroplano, é um bom exemplo de como a imagem de Aleijadinho diz mais da época em que foi criada do que da verdade intrínseca ao homem Antônio Francisco Lisboa. A idéia faz parte de um texto de Affonso Celso, de 1911, que registra: “Aqui o extraordinário Aleijadinho, sobre esculpir testemunhos imperecíveis de seu gênio artístico, aparelhou, segundo a voz popular, um instrumento semelhante aos modernos aeroplanos, como o qual conseguiu, antecessor do glorioso mineiro Santos Dumont, desprender-se da terra e cavalgar a inconsistência do espaço”.
Guiomar de Grammont, com sua análise rigorosa e erudita, em que não falta senso de humor, não quer dar asas à ideologia.
ALEIJADINHO E O AEROPLANOLançamento do livro de Guiomar de Grammont, hoje, às 19h30, na sala João Ceschiatti do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro), dentro do projeto Sempre um papo. Informações: (31) 3261-1501.
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