Beto Magalhães/EM/D.A Press | | A antropóloga Clarice Libânio coordenou pesquisa que catalogou os artistas e manifestações culturais das vilas e favelas de Belo Horizonte | O relacionamento de Clarice Libânio com as comunidades pobres de Belo Horizonte começou na infância, quando a menina acompanhava o pai em reuniões de trabalho. Sociólogo, especialista em urbanização de favelas, Maurício Libânio levava a filha aos encontros de articulação nas periferias da cidade. Desde essa época, ela lembra, aprendeu a lidar com a diversidade – cultural e social -, que marcariam anos depois suas escolhas profissionais. Aos 39 anos, fundadora e diretora da organização não-governamental Favela É Isso Aí com o músico e compositor César Maurício, a antropóloga conta que a experiência tem sido exercício constante de combate a preconceitos impregnados na sociedade brasileira.
Entre vários projetos realizados pela instituição, hoje ela encerra a programação oficial do festival Imagens da Cultura Popular Urbana, que reúne trabalhos de audiovisual produzidos por jovens moradores de favelas ou sobre eles. A idéia inicial do projeto era realizar oficinas de documentário e animação, em Belo Horizonte e nos municípios de Jequitibá e Santana dos Montes, no interior mineiro, e revelar os resultados práticos dos trabalhos realizados. Mas a descoberta de volumosa produção ampliou o formato do evento, que desde quarta-feira apresenta os 118 filmes inscritos, em várias categorias. “Participamos de festivais semelhantes em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília e sentimos a necessidade de dar visibilidade ao que está sendo produzido em Minas Gerais, que tem número enorme de realizadores lidando com a realidade das populações excluídas”, comenta a coordenadora.
Levar o projeto ao interior, explica, propõe outra abordagem do conceito de periferia – termo que ela discute conceitualmente. Na prática, muitos municípios também estão distantes dos acontecimentos da capital. Neste contexto, ela prefere considerar as “periferias sociais”, que podem ser dimensionadas independentemente das fronteiras geográficas. As oficinas, que antecederam a mostra, não tiveram propósito de formação técnica. Para a antropóloga, as aulas tinham objetivo de trabalhar questões como auto-reconhecimento e valorização do outro na comunidade, com foco na cultura local. “Para nós, o mais importante é a possibilidade de reunir elementos sobre esse imenso patrimônio imaterial”, explica.
Hoje, ao final da programação, serão premiados filmes em três categorias. Singular destaca o melhor olhar sobre as particularidades de uma região. Imagens na periferia premia trabalho produzido em oficinas de projetos sociais e ainda votação popular escolhe o melhor segundo critérios subjetivos. Os filmes produzidos pelo Favela É Isso Aí participam da mostra, mas não concorrem aos prêmios. A cerimônia acontece a partir das 20h, com entrada franca, no Usina Unibanco de Cinema (Rua Aimorés, 2.424, Santo Agostinho), depois da sessão das 19h.
Bendita voz
Cursar faculdade de Ciências Sociais, com habilitação em antropologia, lembra Clarice Libânio, foi uma experiência importante, que se somou à vivência nas comunidades. Para ela, a formação teórica ajudou a compreender fenômenos a partir de outros pontos de vista. “A antropologia exige conhecimento do outro. O encontro antropológico é de igualdade dentro das diferenças”. No final dos anos de 1990, ela iniciou mestrado, em dissertação que abordava mitos como preguiça e marginalidade nas favelas. A casualidade de seu orientador ter deixado o país antes da conclusão fez com que ela desistisse do tema, mas a pesquisadora retomou o trabalho recentemente, e apresenta conclusões mês que vem, em banca na UFMG, com novo enfoque.
Desta vez, ela aborda o papel da arte e da cultura na transformação social, a partir de estudo de caso do Grupo do Beco, da Barragem Santa Lúcia. Os artistas chamaram atenção de Clarice com o espetáculo Bendita voz entre as mulheres, que tem como protagonista jovem negra expulsa de casa pelo pai e que sofre violência sexual do marido. Os personagens foram construídos a partir das histórias de vida de 20 mulheres da região. “O processo de construção da peça e o resultado conseguido pelo grupo são muito interessantes porque atingem a todos. O espetáculo trata do tema com muita universalidade”, elogia.
Ao lado de César Maurício, com quem descobriu a cultura e se sentiu estimulada a dar nova forma aos trabalhos nas favelas, Clarice Libânio coordenou a criação do Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte. O processo de pesquisa, iniciado em 2002, resultou em catálogo que reúne 7 mil artistas de várias regiões da cidade. Apesar de o cadastro não haver conseguido reunir todos os jovens que lidam com a cultura, como ela gostaria, a antropóloga considera satisfatória a empreitada. “O alcance foi limitado, mas o impacto foi grande. Demos uma sacudida para que as pessoas – inclusive o poder público – se dessem conta do tamanho e da importância desse movimento”.
Terceira idade
Para ela, muitas iniciativas posteriores foram motivadas pelo reconhecimento de que não podem ser desconsideradas as demandas de uma parte considerável da juventude de periferia, que se dispõe à cultura e à arte como instrumento de transformação. “O Guia cumpriu esse papel, como um impulso para outras organizações”, reforça. A ONG Favela É Isso Aí também foi fruto dessa motivação. Depois de cadastrar os artistas, Clarice Libânio e César Maurício decidiram dar continuidade aos trabalhos e impulsionar outros projetos, como a mostra audiovisual, que será levada aos Centros Culturais até dia 21. A instituição também é responsável pelo Banco da Memória, site na internet que atualiza e aprofunda o cadastro do Guia; a Agência de Notícias, que publica boletim a cada dois meses; e o Estúdio Comunitário, que está em fase de gravação de primeiro CD – uma coletânea de artistas de terceira idade. A diretora lembra que a entidade também lançou recentemente coleção de livros da série Prosa e poesia e acaba de se propor novo desafio: um projeto-piloto que testa metodologia de dinamização da economia local nas favelas.
Para Clarice Libânio, a maior dificuldade das ações está na aceitação das comunidades. Por não ser moradora de periferia, muitas vezes seu trabalho é visto com desconfiança. “Tem sempre alguém pensando que quem vem de fora está querendo explorar o drama alheio. Nem sempre é assim, apesar de esse tipo de situação também acontecer, produto de uma desconfiança que é histórica e tem fundamento”, lamenta. Ela lembra que muitas vezes pensou em desistir, mas acaba constatando que essa circunstância faz parte do desafio de transpor barreiras em favor da cidadania. |
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