A Constituição da República Federativa do Brasil, verdadeiro monumento de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, completou, em 5 de outubro, 20 anos. Documento impregnado de valores e fundado na dignificação da pessoa humana, a Constituição de 1988 passou a ser o centro da vida social, deslocando o eixo em torno do qual gravitava o ordenamento jurídico para se tornar pressuposto de interpretação e aplicação das normas referentes a todos os demais ramos do direito.
Desde sua promulgação, muito se avançou em termos de efetivação de suas normas, sendo certo que, dia a dia, tornam-se reais seus comandos, que saem da incômoda e equivocada posição de promessas vazias e inconseqüentes e ingressam no campo das normas jurídicas, dotadas de imperatividade, passíveis de sindicabilidade judicial.
No campo da Justiça criminal, os direitos fundamentais merecem redobrada atenção, na medida em que se está a tratar de um valor exponencial do ser humano: a sua liberdade. O juiz criminal, portanto, deve ser o grande guardião dos direitos fundamentais, assegurando que o direito de punir do Estado seja exercido dentro das rígidas amarras ditadas, a bem da cidadania, pela Constituição.
Com essa postura não se está estimulando a criminalidade ou incentivando a impunidade, mas sim garantindo que o rolo compressor formado pelos órgãos ligados à segurança pública não passe por cima dos réus, no mais das vezes a parte fragilizada do processo penal.
Como bem destaca, em obra dedicada ao direito processual penal, o notável jurista Claus Roxin, a prisão provisória, antes da formação definitiva da culpa, é a ingerência mais grave na liberdade individual, devendo ser inspirada em um Estado de direito, pelo princípio constitucional da proporcionalidade, de modo a equilibrar, de um lado, a manutenção da ordem, e, de outro, a proteção da esfera de liberdade do cidadão.
A experiência no foro criminal tem revelado que, nesse campo, o grande desafio do magistrado afinado com a Constituição é administrar, com eficiência, as custódias antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, apenas mantendo presos aqueles que apresentarem efetivo e real risco para a ordem pública ou econômica, bem como aqueles que concretamente turbarem a instrução processual ou ameaçarem frustrar a eventual aplicação da lei penal.
Aqui reside um ponto de relevo: a prisão em flagrante delito tem extração constitucional (inciso LXI do artigo 5º da Constituição), mas somente se justifica para impedir a consumação ou exaurimento do delito, bem como para possibilitar a coleta das provas emergentes da situação de flagrância. Depois disso, a custódia passa a reclamar novo fundamento, sob pena de se transformar em verdadeira antecipação da eventual pena, o que atrita, a não mais poder com o princípio do estado de inocência, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Assim, comunicada pela autoridade policial a prisão em flagrante delito ao juiz competente, deve este, de ofício, com os elementos que dispuser (auto de prisão em flagrante delito, termos de declarações, folha de antecedentes criminais, certidão de antecedentes criminais, etc.), depois de oitiva do Ministério Público (MP), manter o autuado preso, agora sob novo título, consideradas as hipóteses de cautela previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP), ou colocá-lo imediatamente em liberdade.
A simples homologação, pelo juiz competente, do auto de prisão em flagrante delito, sem exame, de ofício, acerca da necessidade ou não de se manter o autuado preso, a título preventivo, olvida que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, bem como faz tábula rasa da norma inserta no parágrafo único do artigo 310 do CPP, que impõe a concessão de liberdade provisória, depois de oitiva do MP, “quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva”.
É verdade que a adoção desse sistema garantista implica sérias dificuldades, resultantes da insuficiência de elementos concretos para se decidir, nos próprios autos da comunicação da prisão em flagrante, pela segregação ou pela soltura, mas, destaca-se, o impasse deve ser solucionado em favor daquele que a Constituição declarou, até prova em contrário, inocente, o que não obsta, evidentemente, que se decrete, em momento posterior, a prisão preventiva, caso surjam, no decorrer das investigações, novos elementos capazes de justificar a custódia cautelar.
Enfim, os desafios colocados à efetivação dos direitos fundamentais são muitos, mas não podemos esquecer que a concretização do que foi estabelecido na Constituição depende apenas de nós, devendo haver, para tanto, gradativa mudança de mentalidade por parte daqueles que lidam, diariamente, com o direito, de modo a solidificar a posição de reverência que todos devemos ter em relação ao texto maior.
Relembrando as palavras do saudoso deputado federal Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, referindo-se à recém-promulgada Constituição: “Que Deus nos ajude para que isto se cumpra”.
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