Antônio Scorza/AFP |  | Fenômeno Barack Obama cruza fronteiras e mobiliza a esperança dos brasileiros | A eleição do presidente Barack Obama deixou lições para os americanos. E para o mundo todo. O primeiro fato incontestável foi o incremento da crença na política como esfera de manifestação da vida pública. Não foi apenas pelo fato de ser uma campanha que ganhou repercussão mundial, da disputa pelo comando da nação mais rica do planeta, ou da coincidência com a crise dos mercados, de conseqüências ainda desconhecidas. O candidato democrata criou em seu país uma onda de participação e vontade de protagonismo que parece deslocada no tempo e espaço.
Em primeiro lugar, nos EUA, a política vinha se tornando instrumento de divisão, reforço de isolamento, arma de arrogância, confirmação de posição de destaque. Tudo no cenário internacional apontava para a separação em relação aos interesses da maioria das nações, para a desobediência de decisões coletivas de fóruns reconhecidos pela seriedade e representatividade, para a concentração das medidas econômicas em nome do protecionismo irresponsável. Os EUA vinham, desde Ronald Reagan, numa crescente desmobilização e desvalorização da política em nome dos interesses do mercado.
Em seguida, a dinâmica da política externa norte-americana, emanada dos mesmos valores, elegeu o combate ao terrorismo como ação mais relevante, identificando inimigos, demonizando democracias legítimas, impondo barreiras, ameaçando com embargos. O país se isolou ao lado de aliados ricos, mas perdeu o que talvez tenha sido sua maior obra de civilização: o legítimo afeto que nutria em todo o mundo em razão de sua defesa da liberdade.
Em vários aspectos, essa confiança foi se desfazendo. Há os processos relacionados aos direitos humanos, sobretudo envolvendo questões de terrorismo. Cenas de tortura, descumprimento de tratados internacionais, censura à informação, espionagem, xenofobia, intolerância de crença. Tudo que sempre foi combatido pela história política do país ganhou álibi a partir da guerra ao terrorismo. Em estado de guerra permanente, a posição de defesa política foi transferida para a arena econômica e de relações internacionais. Os EUA se autoproclamaram defensores da economia de mercado – embora não a pratiquem quando se trata de seus interesses – e da democracia internacional, mesmo que à custa de guerras e invasões repudiadas por seus cidadãos.
Além disso, a própria situação interna do país, cada vez mais cindido entre ricos e pobres, tem levado à insatisfação com as chamadas políticas sociais, que foram pulverizadas no período pós-Reagan. Saúde, habitação, emprego e violência não foram solucionados pela lógica competitiva do mercado. O país das liberdades perdeu a capacidade de garantir direitos que tinham melhor provimento no período que antecedeu a vaga da globalização. Tocar em questões de natureza social era considerado populismo e, no estágio seguinte, começaram a ser identificadas as populações geradoras de problemas, instigando a xenofobia e o isolacionismo.
HARVARD
A campanha de Obama trouxe elementos inovadores que merecem ser destacados. O candidato democrata tem história política singular para os padrões de seu país. Formado em Harvard, uma das mais prestigiadas instituições de ensino da elite norte-americana, deixou de lado a carreira jurídica para se especializar em ações voltadas para a política social. Algo que, na América Latina, poderia ser chamado, com a devida singularidade, de ações de assistência social ou de movimento de base. Obama construiu sua carreira a partir dessa experiência. Aprendeu a negociar, a incorporar outras correntes, a fazer política. Levou esse conhecimento para seu partido e para o Senado. Daí, vencer a poderosa e tradicional máquina voltada para Hillary Clinton foi um portento.
Em sua campanha, Obama carreou sua trajetória. Ele ajudou a ampliar o universo de eleitores, incorporou o eleitorado jovem, fez uso de estratégias que fugiam do marketing para se aproximar do debate vivo. Dono de retórica poderosa e de grande charme pessoal, fez o contrário do que se espera de um político tradicional: não usou de recursos populistas, não chamou a atenção para sua personalidade nem para a de seu oponente, priorizou grandes questões e foi franco em questões polêmicas, como a guerra do Iraque, a política externa e a ecologia.
São comportamentos que o credenciam a tomar a frente do país mais poderoso do mundo, a enfrentar questões universais e uma grande crise que, não por acaso, tem seu epicentro no próprio descontrole do sistema econômico baseado em padrão inviável de consumo. Para cumprir essa missão, além da expectativa mundial, Barack Obama carrega a história de seu país. Ele é o exemplo de uma nação construída na liberdade e na tolerância. Aprendeu a conviver com a diferença em sua trajetória de vida cosmopolita. Um país dividido historicamente entre negros e brancos e que, com o tempo, foi incorporando novas distinções em relação aos estrangeiros, foi capaz de reagir a essa inspiração e propor ações afirmativas. Barack é um exemplo do sucesso dessa intervenção civilizatória. Ela não gerou mais ódios. Impôs sua verdade por meio do respeito.
DEBATE POLÍTICO
Por tudo isso, pode parecer espantoso que o candidato democrata não tenha utilizado em sua campanha o discurso racialista. Ele não precisava disso. Barack Obama é um exemplo de que raça não existe, como defendem os cientistas. Mas que o racismo é terrível chaga para qualquer nação. Esse quadro não é apenas norte-americano, mas se deixa entrever em várias regiões do mundo, inclusive no Brasil.
Um debate que mobiliza da academia ao movimento negro procura equacionar o dilema social de um país em que os mais pobres são negros. Para alguns setores, pensar em ações afirmativas, como cotas em universidades, seria importar o discurso racialista, odioso e capaz de gerar comportamentos distantes da história da constituição da nacionalidade. Para outros, a evidência da injustiça histórica cometida contra as populações negras tem um potencial de permanência que não será alterado sem atitudes que cobrem a conta da exclusão, com maiores ofertas de participação nas agências de inclusão social valorizadas, como os postos de trabalho de destaque e as vagas nas universidades públicas.
A corrente sociológica que vem dos estudos de Florestan Fernandes, que analisou a inclusão do negro na sociedade de classes no Brasil, alimenta com argumentos os defensores das cotas. Por outro lado, um novo discurso baseado em análises de pesquisas recentes quer tirar do racismo a responsabilidade pela diferenciação social, ancorado na tese científica da moderna biologia, que assevera que raça não existe. O interessante é que a pesquisa genética, que deveria vitaminar exatamente as conseqüências danosas do racialismo “científico” do século 19, é usada para retirar a responsabilidade pela diminuição de suas perdas civilizatórias. São sempre os brancos que dizem que o racismo não existe.
A convivência pacífica entre negros e brancos no Brasil é tida como exemplo de democracia racial a ser exportada. No entanto, não se exporta que essa realidade se constrói sobre pilares ideológicos poderosos. Como toda ideologia, ela é tão mais forte quanto mais se afigura real. A boa ideologia não é a que convence pelo argumento, mas que é aceita como natural. Assim, parece natural que os brasileiros se tratem como irmãos, mas que haja mais brancos nos bairros ricos e mais negros nas favelas. É natural que nos consideremos meritocráticos, mesmo que as posições superiores sejam quase sempre de brancos e as subalternas, de negros. As exceções cumprem seu papel.
No Brasil, há um carimbo usado para segregar que mascara a vigência violenta do racismo constitutivo de nossa divisão social. Os exemplos de pessoas pobres que sobem na vida depois de freqüentar escolas públicas é, se não um mito cândido e ingênuo, argumento de má-fé científica e de pouca exemplaridade social.
O campo das ações afirmativas ou de assistência compensatória no Brasil costuma ser dividido em dois rounds. O primeiro é o da defesa. Trata-se de instituir uma postura sistemática de oposição ao racismo em todas as suas vertentes, da discriminação escondida pelo preconceito latente e pela localização social diferenciada das duas populações à violência policial e social, que, provam todas as estatísticas, mata mais negros que brancos. O genocídio é uma conclusão natural da nossa cordialidade racialmente orientada.
O outro campo de ação é o da promoção, que se dirige sobretudo ao setor educacional. Trata-se desde a facilitação de acesso até a limpeza do material didático das contaminações racistas que marcam nossa formação. Remover o preconceito e estimular a auto-estima das crianças negras não pode ser visto como defesa de ódio, mas como estabelecimento respeitoso de diferenças.
Barack Obama, mesmo egresso de família de classe média e tendo estudado em bons colégios, não deixa de ser filho das ações afirmativas. Sua filiação ao bem-sucedido processo de inclusão criado em seu país se dá menos pela inserção pessoal que pela aposta em seus resultados. Ele faz política como quem conhece as cisões, mas que não as vê como falsas, cheias de ódio ou portadoras de disputa. O novo presidente norte-americano leva para a Casa Branca uma nação de negros. Mas não leva um país em que as pessoas tenham raça. Raça não existe. Racismo sim. |
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