A ação que resultou na execução sumária do menino João Roberto não foi uma fatalidade. Foi fruto de uma política de segurança pública que fomenta o conflito e estimula o uso da violência por parte dos policiais.
por Alessandro da Silva*
A semana começou com a notícia da morte do menino João Roberto Amorim Soares, de 3 anos, vítima da ação de dois policiais militares na cidade do Rio de Janeiro. As imagens do circuito de TV do edifício em cuja frente o triste fato se deu revelam que os policiais saíram da viatura e imediatamente abriram fogo contra o carro no qual estavam a mãe, um bebê de nove meses e o pequeno João.
A dor dessa família comoveu o país. A mãe ainda está em estado de choque. O pai mostrou toda a indignação em desabafos que expuseram a crueza dos sentimentos experimentados.
Como superar tamanha tragédia? De novo, mais uma vez, outra família destroçada pela conduta dos representantes do Estado.
Os policiais justificaram o equívoco alegando que confundiram o carro da família com o veículo no qual assaltantes armados estavam em fuga.
Da desgraça emerge uma clara constatação: a ação dos policiais tinha o objetivo de matar os ocupantes do veículo. Imaginavam que eram criminosos. Equivocaram-se.
Ainda assim, mesmo que se tratasse de assaltantes, a gravidade da conduta não seria menor.
Ora, nosso país vive em um pretenso estado democrático de direito, no qual o exercício do poder é limitado por normas gerais pré-estabelecidas - Constituição e leis - cuja observação é obrigatória. Essa concepção foi fundamental para a consolidação das liberdades individuais e coletivas, pois impede ou obstaculiza o exercício arbitrário e ilegal do poder. Dentre essas garantias individuais estão o banimento da pena de morte e o presunção de inocência.
Para a polícia do Estado do Rio de Janeiro, contudo, esses direitos nada valem.
As ofensas são cotidianas e escancaradas.
A ação que resultou na execução sumária do menino João Roberto não foi uma fatalidade. Foi fruto de uma política de segurança pública que fomenta o conflito e estimula o uso da violência por parte dos policiais.
No fim dos anos 90 o Rio de Janeiro adotou a chamada condecoração faroeste, que premiava e até promovia os policiais segundo a quantidade de execuções de supostos criminosos. Recentemente a Secretaria de Segurança anunciou que pagará aos policiais uma recompensa de até R$ 3.000,00 por cada fuzil recuperado. Pistolas e revólveres já rendem R$ 500,00.
No governo de Sérgio Cabral a política de enfrentamento foi intensificada, com freqüentes manifestações do chefe do executivo estadual no sentido de que esse é o caminho mais adequado. Ainda quando as ações resultam na morte de inocentes, como o menino Jorge Cauã da Silva Lacerda, de 4 anos, trucidado em ação na favela da Coréia, o governador afirma que "a Secretaria de Segurança tem carta branca para agir contra os traficantes. Ela tem o meu estímulo para trabalhar nessa direção". Na mesma ocasião o secretário José Mariano Beltrame defendeu a violência da ação, apesar das mortes de inocentes. "Mesmo morrendo crianças, não há outra alternativa. Esse é o caminho", afirmou.
No mais recente episódio dessa série de tragédias anunciadas, as autoridades mudaram de discurso. Cabral afirmou que os envolvidos serão expulsos da PM, visto que se trata de "assassinos", de "uma dupla de débeis mentais, sem discernimento". Beltrame classificou a ação de "desastrosa", motivada por falta de treinamento e raciocínio, e pediu desculpas à população e, em especial, aos familiares do menino.
Não. Não se trata de uma dupla de débeis mentais sem treinamento. Em verdade são policiais treinados para matar. Atirar primeiro, perguntar depois, eis a regra de conduta.
Tanto é assim que somente no ano de 2007 a polícia fluminense matou 1.330 pessoas. A quantidade aumentou em relação a 2006, quando o número de mortos chegou a 1063. Em 2008 parece que há um esforço concentrado para superar o recorde do ano anterior. Nos primeiros três meses do ano, foram registradas 358 mortes, o que representa um aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2007.
Para se ter uma idéia da extensão do massacre, em todos os Estados Unidos a polícia mata cerca de 300 pessoas por ano. Só no Rio de Janeiro essa média é superada em quatro vezes.
A estratégia é mascarar as execuções por meio do registro de autos de resistência, nos quais os mortos são acusados de terem resistido à prisão e atacado a polícia.
Os policiais responsáveis pela morte de João Roberto também esperavam poder ocultar a execução dos supostos criminosos por meio do auto de resistência, mas os sinistros fatos que se seguiram inviabilizaram esse recurso.
Em 1961, o jovem Francisco de Hollanda, então com 17 anos, foi preso em São Paulo após furtar um veículo em companhia de outro jovem também menor. O rapaz levou uns safanões e dormiu uma noite na antiga Febem. Se a polícia da época adotasse os métodos atuais, possivelmente o cantor e compositor Chico Buarque seria mais um a figurar dentre os mortos em confronto.
Não bastassem os atentados aos direitos dos eventuais infratores legais, essa política coloca em risco a segurança da população em geral. Não por acaso, são cada vez mais corriqueiros os casos de assassinatos de inocentes. Se nas favelas isso é fato notório, a truculência também tem chegado aos bairros de classe média.
Além do menino João Roberto, somente no último mês foram outros três casos de execução que vieram à tona.
A engenheira Patrícia Franco, 24 anos, está desaparecida há 24 dias, depois que seu carro foi alvejado por tiros e despencou no canal de Marapendi, na Barra da Tijuca. A suspeita é de que dois policiais militares tenham assassinado a jovem e ocultado o corpo. A perícia já concluiu que as marcas de tiros no carro são compatíveis com o calibre das armas dos militares.
Em 30 de junho o menino Ramon Fernandes Dominguez, 6 anos, morreu vitimado por um tiro na cabeça, na favela do Muquiço, em Guadalupe, zona norte do Rio de Janeiro. A população da comunidade acusa policiais de terem disparado no meio da rua e ferido a criança.
No mesmo sábado, o jovem Daniel Duque, 18 anos, foi morto por um policial militar durante uma briga em frente a uma boate em Ipanema.
A relação entre a intensificação da desastrosa política de confronto e o aumento de vítimas fatais é patente.
Sendo assim, a responsabilidade ultrapassa a conduta individual dos agentes policiais e deve alcançar aqueles que implementaram esse modelo de comportamento, passando pelos oficiais responsáveis pelo treinamento e incidindo, em especial, nos homens que institucionalizaram a barbárie: o governador Sérgio Cabral e o secretário de segurança pública José Mariano Beltrame.
*Alessandro da Silva é juiz do trabalho e membro do conselho de administração da Associação Juízes para a Democracia.
Fonte: Terra Magazine
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