Não basta pedir perdão; urge adotar a eqüidade!



por Fatima Oliveira*

Políticas de Estado e sociedades médicas usavam regras do século 19 para
barrar negros na profissão médica e na assistência à saúde


A notícia não repercutiu na mídia como deveria, caso o racismo fosse visto
como uma chaga a eliminar. Falo do pedido de perdão da Associação Médica
Americana (AMA), assumindo que adotou por mais de um século práticas
racistas contra médicos e pessoas negras - atitudes que se refletem no
''irrisório número de médicos negros e no alto índice de doenças entre negros
e outras minorias''.

Nos Estados Unidos, 3% dos médicos são negros; das médicas, só 1% -
explicável pela soma do racismo à história mundial da medicina, que registra
até há meio século a exclusão feminina. Até 1960, raros hospitais nos EUA
aceitavam negros como internos - condição sine qua non para exercer a
medicina no país. Há mais de 40 anos, médicos negros insistiam para que a
AMA condenasse as ''políticas de Estado e sociedades médicas locais que
usavam regras do século 19 para barrar negros'' na profissão médica e na
assistência à saúde; e parte expressiva do aparelho formador de
profissionais de saúde, como no Brasil, que não acolhe os robustos dados da
medicina baseada em evidências sobre as singularidades do recorte
racial/étnico na saúde.

Até 2005, a AMA jamais condenara práticas racistas, quer do Estado (Caso
Tuskegee, Alabama, 1932-1972) ou dela; e nem adotara comportamentos éticos e
políticos anti-racistas na medicina diante de dados comprobatórios, como os
do ''Estudo do Canto'' (Universidade do Alabama, 2000) e da pesquisa com pais
de crianças negras e hispânicas em hospitais (Baltimore-Maryland, 1990).

O Caso Tuskegee foi uma pesquisa sobre sífilis em 600 negros, 399 deles com
a doença, a quem o uso de penicilina foi proibido! Eram oito sobreviventes
em 1997 quando o presidente dos EUA lhes pediu perdão! O ''Estudo do Canto''
revelou: negros têm menos chances do melhor tratamento para infartos - para
cada cem brancos adequadamente tratados, foram apenas 85 negros. A segunda
pesquisa constatou que pais negros e hispânicos têm medo do racismo nos
hospitais; bebês negros e hispânicos, acima de seis meses, têm 70% menos de
probabilidade que os brancos de boa assistência médica; e a disparidade de
qualidade de saúde entre negros e brancos não diminui, mesmo quando os
negros têm educação e renda razoáveis. É cruel, ou não?

Nos EUA, negros são 12,8% da população; antes do furacão Katrina (2005),
exibiam os seguintes dados: eram 32% dos pobres; em 2004, 19,7% não
acessavam nenhuma assistência médica, contra 11,3% dos brancos; 24,2% dos
que recebiam menos que US$ 25 mil/ano não possuíam garantia de assistência
médica, pois lá não há acesso universal ao direito à saúde; e dos 433
professores contratados, em 2003, pelas universidades de elite (Yale,
Harvard, Princeton e Columbia), apenas 14 eram negros.

O Katrina desnudou os indicadores sociais e raciais dos EUA, obrigando o
presidente da AMA, John Nelson, a abordar o racismo no seminário ''Cuidados
de saúde e como eliminar disparidades'' (2005). *No pós-Katrina foi
noticiado, sob a manchete ''Diferenças raciais matam 84 mil nos EUA'', artigo
de Ernest Moy e David Atkins (Britsh Medical Journal, 21.10.05), que *concluiu:
o racismo nos EUA causa um ''virtual furacão Katrina'' semanalmente (!),
traduzido em maior incidência de diabetes, cardiopatias, câncer, Aids, abuso
de drogas e álcool, sobretudo em negros, além de desemprego, pobreza e
alienação - os mesmos fatores que deixaram o povo de Nova Orleans a mercê do
Katrina ''contribuem para as diferenças na saúde de grupos pobres e minorias
raciais''. A lição é: a eqüidade na atenção à saúde é arma de combate ao
racismo.




*Fatima Oliveira, Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e
Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das
Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005

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