Qual é a parte que lhe cabe?

"Habituamo-nos a ver e a tratar os diferentes como anormais que nos ameaçam em todo momento, e não percebemos a injustiça que cometemos"
Patrícia Espírito Santo
E-mail para esta coluna: patriciaesanto@uai.com.br
Causou grande indignação a morte do garoto João Roberto, causada principalmente pelo despreparo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, no início do mês. Sobre isso, gostaria de comentar a declaração do governador daquele estado, Sérgio Cabral, ao criticar a atuação dos policiais responsáveis pelos tiros que atingiram a criança. “Os dois [policiais] cometeram um erro fatal. Uma abordagem absolutamente insana. Os dois agiram que nem dois débeis mentais [...]. Como pai, custei a dormir esta noite, com a imagem do pai do menino, pelo seu desespero e sofrimento. Como governador, foi um erro fatal, uma completa incapacidade de discernimento em um momento de tensão”.

Do lado de cá, fiquei também imaginando como estariam se sentindo os pais do menino, assim como tantos outros que perdem seus filhos em situações brutais e evitáveis como essa. Assim como fiquei imaginando como estariam se sentindo famílias que têm, entre seus membros, algum portador de deficiência mental.

Caso eu tivesse um filho “débil mental”, jamais gostaria de vê-lo comparado a pessoas acusadas de qualquer tipo de violência, principalmente assassinato. Cabral pode argumentar que estava se referindo à falta de capacidade de “discernimento em um momento de tensão”, mas até nesse caso estaria sendo injusto com muitos deficientes mentais. Se você parar para observar, ao andar pelas ruas do Centro de BH, verá muitos deles trabalhando dignamente e com todo, senso de responsabilidade esperado de um cidadão considerado “normal”.

Chamo a atenção para esse comentário infeliz e dispensável porque nos habituamos a ver e a tratar os diferentes como anormais que nos ameaçam em todo momento, e não percebemos a injustiça que cometemos.

Fazemos isso com os homossexuais e com todos aqueles enquadrados entre as minorias e os desprovidos de posição de poder, como os negros, as mulheres, os pobres. Quantas vezes ouvimos alguém que, ao criticar um comportamento, diz que “aquilo é coisa de mulherzinha”, “de retardado”, ou “de preto safado”? O sentido dos comentários é sempre valorativo e depreciativo.

Gostaria de lembrar que, pela lei brasileira (e, se não me engano, pela lei da maioria dos países), cadeia é lugar para condenados e não para débeis mentais, homossexuais, mulheres, negros e pobres, a não ser que tenha sido comprovado que eles cometeram algum crime. E que o lugar que lhes cabe na sociedade não deveria ser o mesmo que nosso preconceito reserva.

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