Repensando a lei federal de Incentivo à Cultura e o papel do Estado
Renato Dolabella Melo, Advogado. Mestrando em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduando em Direito de Empresa pelo CAD/Universidade Gama Filho – RJ. Membro da Comissão de Terceiro Setor da OAB/MG. Membro da Comissão de Concorrência e Regulação Econômica da OAB/MG. Professor de Direito em cursos de capacitação de entidades do Terceiro Setor do Instituto de Governança Social – IGS.

Em 1984, Ronald Dworkin apresentou um texto no Metropolitan Museum of Art de Nova York, transcrito em sua obra “Uma Questão de Princípio”, analisando o papel do estado na cultura, especialmente o patrocínio público. Afirmou que “o auxílio deve ser oferecido na forma de subsídios indiscriminados, tais como isenções de impostos para doações a instituições culturais, em vez de subsídios específicos a instituições particulares, salvo se a doação privada demonstrar que prejudica mais que favorece a diversidade e a inovação. Quando houver discriminações, elas devem favorecer formas de arte que são muito dispendiosas para ser sustentadas por transações de mercado, inteiramente privadas”.

A partir daí, trataremos da lei federal de Incentivo à Cultura (8.313/91), que possui duas formas de incentivo: fundos (repasses diretos, com ou sem ônus para o beneficiado) e mecenato (autorização para captação de doações/patrocínios particulares que gozarão de incentivos fiscais). Hoje, o instrumento mais comum é o mecenato, considerado adequado por Dworkin.

Porém, deve-se verificar como a contribuição privada efetivamente beneficia a cultura. O maior entrave aos proponentes de projetos culturais no âmbito federal é a captação de recursos, e não a aprovação pelo Ministério da Cultura (MinC), porque muitos dos patrocinadores (grandes empresas) trabalham com a lógica de mercado fundada na visibilidade (e na maior divulgação de sua marca) para escolher quem irá patrocinar. Assim, os patrocinadores tendem a apoiar projetos de artistas já consagrados. Segundo Dworkin, o patrocínio não deveria se destinar a quem poderia subsistir pelo mercado.

Vejamos o caso do Cirque du Soleil, cujos ingressos eram vendidos de R$130 a R$550. O projeto PRONAC 046458, aprovado pelo MinC, permitiu a arrecadação de R$9.351.971,46 em patrocínios incentivados. Uma vez que a lotação se esgotou rapidamente, porque se trata de excelente grupo artístico, questiona-se a necessidade de bônus fiscal para esse tipo de evento, pois tudo indica que essa apresentação poderia ser efetivada apenas com os recursos de mercado.

A escolha dos patrocinadores por vezes ignora a diversidade/inovação e o acesso das classes menos favorecidas aos bens culturais, em prol de projetos de artistas consagrados. Estes possuem maior visibilidade, mas não precisariam desses incentivos fiscais em muitos casos. É necessário o uso de critérios claros na seleção para o mecenato e destacamos a lei estadual de Incentivo à Cultura em Minas Gerais, uma vez que esta busca analisar os projetos com base em parâmetros objetivos. A utilização efetiva desses critérios configura uma política pública por trás do mecenato, porque qualquer escolha do mercado na seleção dos projetos será prévia e efetivamente condicionada pelo poder público.

Sendo importante analisar se o projeto poderia ser realizado sem o bônus tributário, propomos a revisão dos percentuais utilizados. A Lei 8.313/91 prevê distintos índices de incentivo fiscal pela área da proposta, não pelas condições particulares do proponente/artista. Há dedução integral para contribuições aos projetos previstos no artigo 18 da lei (artes cênicas, livros artísticos, música erudita, entre outros). Aqueles fora desse rol podem oferecer percentuais menores de benefício.

Uma proposta que não vedaria a aprovação de projetos de artistas já consagrados seria oferecer um índice decrescente de incentivo fiscal quanto maior fosse o projeto. Em geral, as propostas de maior vulto são vinculadas a artistas que, comparados a outros de menor fama, dependem menos do apoio do mecenato.

Exemplificando: as contribuições feitas a um projeto aprovado em R$40 mil fariam jus a, digamos, um abatimento fiscal de 80% do recurso transferido. Contribuições idênticas, caso feitas a um projeto distinto, aprovado em R$90 mil, implicariam em desconto de 60%, inferior à primeira hipótese devido ao seu maior porte.

Haveria maior contrapartida daqueles que contribuíssem para projetos de maior visibilidade (presumida em função do seu porte, pois é necessário algum critério para implementação concreta da sugestão) e seria fomentada a transferência de recursos a projetos mais dependentes do mecenato. Além disso, a menor renúncia fiscal permitiria ações estatais em projetos que não poderiam ser executados sem esse apoio. Seria possível maior alocação de recursos nos fundos de repasse direto da Lei 8.313/91, porque haveria aumento na arrecadação de tributos se os particulares reduzissem suas contribuições devido ao benefício decrescente.

Claro que a sugestão necessita de ferramentas adicionais para sua execução eficiente. Por exemplo, dever-se-ia pensar em regras para coibir a divisão simulada de um projeto de maior porte em vários outros, menores, visando obter, com isso, maior percentual de incentivo fiscal.

A proposta leva em conta os interesses dos agentes culturais, sem vedar totalmente os benefícios legais a nenhum, mas exige maior contrapartida por parte do mercado, que teria reduzida a comodidade de gastar seus recursos de marketing em ações que lhe geram um grande incentivo fiscal (em alguns casos, total) com ainda lucrativa propaganda comercial.

Claro que os breves pensamentos deste trabalho apenas esboçam uma proposta inicial de discussão da lei federal de Incentivo à Cultura. É preciso debater profundamente a questão para a elaboração de políticas públicas, na esfera federal, que gerem efetivamente a criação e circulação de bens culturais.

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