| Religião e eleições municipais |
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Tudo isso demonstra que na verdade, ainda que se insista em separá-las, religião e política estão profundamente interligadas e uma influencia a outra quer queiramos quer não. Além disso, este estado de coisas faz patente que pretender neutralidade tanto em religião como em política nunca resulta em saída fértil e consistente.
O processo que leva da adesão religiosa ao exercício de uma dada modalidade de cidadania democrática, ou inversamente, da afirmação de uma dada identidade democrática a exigências de abertura do campo religioso à lógica da política não é unilinear, nem assegurada por critérios de compatibilidade e coerência. [1] Tudo isso já era percebido por um dos maiores teóricos da religião, Max Weber, que afirmava: "Nem as religiões, nem os homens, são livros abertos. Foram antes construções históricas do que construções lógicas ou mesmo psicológicas sem contradição. Com freqüência, encerraram uma série de motivos, e cada qual, se seguido isolada e coerentemente, teria obstruído o caminho dos outros ou se chocado contra eles frontalmente. Nas questões religiosas, a ‘coerência’ foi a exceção, e não a regra".
Portanto, a comunhão de interesses e propósitos entre atores religiosos e atores políticos, ou mais abstratamente, entre vivência religiosa e cultura democrática, quando se estabelece, não se dá por mera confluência ou "conversão". As articulações entre uma e outra dimensão vital em geral se dão por referência a adversários ou conflitos e controvérsias que produzem polarizações parciais no espaço social, levando à agregação de campos heterogêneos. Assim é a relação entre religião e política. É preciso sempre analisá-la em seu contexto, pois ela não se presta a generalizações estáveis ou categóricas.
Os valores políticos dos atores religiosos brasileiros contemporâneos se desenvolveram já num espaço politizado, desde os anos da ditadura, em que não somente uma série de espaços "privados" (como as igrejas) se convertiam em lugares de resistência ao arbítrio, à censura, à violência, desempenhando, no dizer de Roberto Romano, uma função “tribunícia”; ou enfrentavam internamente pressões pela tradução das demandas democratizantes em termos religiosos e vice-versa. Também ao funcionar - principalmente no caso católico - como espaço articulador de um conjunto de demandas populares ou como proteção aos perseguidos pelo regime, o campo religioso inseriu-se num processo de interação com o campo político, e elementos de cada um passaram a se inscrever no outro. A partir da redemocratização, manteve-se o contexto politizado, pela contínua exposição dos fiéis ao debate público - especialmente no período de
Com base nesta "permeabilização" de fronteiras entre o campo religioso e o político, os processos de formação de identidades e agendas nos dois campos forjam valores na nova geração de atores religiosos que simultaneamente mantêm e alteram referências tradicionais da religião e da política no país. Um debate que, no protestantismo, começa pelo problema da legitimidade da política e se amplia para implicações missiológicas (como a relação entre protestantismo e cultura brasileira, protestantismo e pluralismo ideológico, protestantismo e o lugar da mulher no ministério ordenado e na vida social). No catolicismo, se caracteriza inicialmente por uma tentativa de reforma social ligada a uma experiência de "reinvenção" eclesial – com a Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de base - e, nos últimos dez anos, por uma reafirmação de posturas tradicionais da Igreja face ao que a hierarquia entende ser um afrouxamento relativista dos valores e uma prevalência pouco altruísta do comportamento de mercado.
Desta forma, os valores não são a expressão de subjetividades pré-políticas, nem emergem de uma esfera pré-política para "chegar" à política. São antes o resultado da interação entre religião e democratização. De um lado, esses valores são integralmente religiosos, no sentido de que não decorrem logicamente de valores políticos, nem são reflexo de forças econômicas ou posições de classe. De outro lado, não são valores expressivos de uma vida social ao abrigo da política (quer no sentido institucional, quer no de uma dimensão estruturante do social).
Efetivamente, a presença do bispo Crivella nas eleições municipais do Rio de Janeiro configura exemplarmente este estado de coisas na medida em que se apresenta diante das autoridades eclesiásticas católicas e protestantes históricas insistindo em não se identificar como bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. Conhecido pela oposição cerrada que fez à Igreja Católica, e sendo uma pessoa de peso protagonico em sua agremiação religiosa, Crivella pretende uma neutralidade que não tem nem pode ter.
Pode até ser que consiga ganhar a prefeitura do Rio de Janeiro, mas terá que fazê-lo carregando sobre os ombros o fardo do que foi e é em termos religiosos. E seus eleitores não conseguirão dissociá-lo daquela que foi sua carteira de identidade. Se religião e política interferem uma na outra respectivamente, certamente as eleições municipais de 2008, muito especialmente no Rio de Janeiro, são um claro exemplo disso.
[1] Cf. Joanildo A. Burity, Religião e cultura cívica: onde os caminhos se cruzam?, INPSO, Instituto de Pesquisas Sociais, FUNDAJ, Fundacao Joaquim Nabuco, Recife, Pernambuco, Brasil. Seguimos esse texto de perto na reflexão mais teórica.
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