Da bagatela ao crime organizado

A alegação de que muitas pessoas procuram o caminho da criminalidade como meio de vida diante da falta de oportunidade não pode ser tomada como verdade incondicional

Flávio Reis Mello
, Promotor da 13ª Promotoria de Justiça de Tóxicos da capital, Especialista em Direito Público.

Muito se tem discutido a respeito do avanço do crime organizado, entendido como fenômeno moderno de enfraquecimento das instituições estatais pela fortificação dos métodos de infiltração nos segmentos do Estado, aí entendidos, as polícias, o Ministério Público e os três poderes, com evidente prejuízo à apuração dos graves delitos agora praticados através da privatização do espaço público.

Leis são criadas objetivando dar maior celeridade ao processo, enumerando novos crimes, estabelecendo novas formas de penalização, sem que o cidadão sinta-se mais seguro. Ao contrário, apesar dos avanços legais, do emprego de novas ferramentas e da união de esforços para conseguir maior eficiência no combate à crescente criminalidade, é voz corrente o seu aumento.

Para alguns, o aumento de ocorrência de crimes violentos está umbilicalmente ligado às questões sócio-econômicas, sendo que para tal corrente de pensamento, quanto mais pobre a região, maior a população marginalizada, percebendo-se o aumento da incidência de crimes cometidos em tais localidades. A alegação de que muitas pessoas procuram o caminho da criminalidade como meio de vida diante da falta de oportunidade não pode ser tomada como verdade incondicional.

O Estado Democrático de Direito, tão questionado em nosso país, é alvo constante de grupos criminosos especializados em fraudes nas licitações, favorecimento pessoal, corrupção de agentes públicos, ações que levam a grandes perdas para o erário. É constantemente veiculada na mídia notícia de personagens famosos, sobretudo do meio político, que mesmo processados e condenados, levam uma vida tranqüila, acumulando lucros auferidos de maneira ilícita, guardando fortunas em paraísos fiscais, havendo dificuldade em verdadeiras batalhas judiciais e extrajudiciais para se recuperar, ao menos, parte do dinheiro proveniente da atividade criminosa.

Assim, uma fraude em licitação pública que cause enorme prejuízo ao Estado, muitas vezes, sequer é percebida pelos agentes públicos que, por questões administrativas, por desconhecimento das normas ou mesmo por conivência, nem tomam conhecimento da irregularidade. Ou, tendo ciência, através de pareceres de uma análise de prestação de contas apresentado pelo Tribunal de Contas, que pouco, ou quase nada, poderá fazer, seja em razão do tempo, seja pela dificuldade de responsabilização do agente causador do dano, ou até mesmo por falta de meios eficientes para se provar tecnicamente que o asfalto utilizado pela empreiteira “X” tratava-se, na verdade, de uma mistura de péssima qualidade, com custo bastante inferior ao valor contratado pelo órgão público.

Parece estar claro que essa não pode ser uma ação isolada de um megaempresário ou mesmo da pessoa jurídica por ele criada, porém faz parte da cultura do “jeitinho brasileiro” proveniente da impunidade.

Ora, acaso pertencêssemos a um país onde ninguém escapasse das malhas da lei, seja o autor do crime de bagatela, seja o temido praticante de estupro que resultou na morte de uma criança, ou mesmo aquele empresário, que através de sua pessoa jurídica, fraudou os cofres públicos, independentemente de qualquer uma destas situações, todos as dívidas com o Estado deveriam ser saldadas, na medida da responsabilidade de cada um.

Acredito que as futuras reformas da legislação deveriam prever meios adequados para apuração e processamento de variados tipos de crimes, mas , além disso, que seja permitida e incentivada uma prática administrativa preventiva, no sentido de se evitar o ilícito, e ainda, uma vez constatado o prejuízo, permitir a responsabilização penal, a adoção de medidas para bloquear o patrimônio dos envolvidos na organização criminosa e a reposição imediata ao lesado do produto auferido com o crime praticado. Ou seja, ainda que o dinheiro conseguido com a corrupção esteja no exterior, deveria a legislação, numa espécie de desconsideração da personalidade, permitir a recomposição de patrimônio do ente público.

O que defendo é que a cidadania e a dignidade da pessoa humana deixem de ser meros princípios do Estado, passando a alcançar o status de fato social, para proteger o interesse público do grande número de excluídos, hoje cooptados pelas políticas assistencialistas.

É preciso que todo cidadão tenha em mente que aquele indivíduo, por si próprio ou por meio das atividades de sua empresa, responderá por ilícito que tenha cometido, cabendo ao Estado assegurar o efetivo cumprimento da pena com previsões de regimes diferenciados e permitindo benefícios como o da progressão de regime para apenados que se mostrem aptos e dignos ao convívio social, indeferindo idêntico benefício para os não adaptados e assegurando o isolamento daqueles criminosos mais violentos ou que exerçam, pela intimidação ou pelo poderio econômico, influência nefasta aos outros presos, prosseguindo, ainda quando encarcerados, sua atividade criminosa.

Ora, a pena, enquanto castigo estatal, deve impingir naquela pessoa devidamente condenada o temor em razão do erro praticado, não sendo caso de ferir a dignidade do processado à hipótese de recolhimento em acomodações inferiores às que teria em sua suntuosa residência. Assim, ao cidadão de bem, cumpridor de seus deveres, restará presente a sensação da tranqüilidade pela proteção do Estado, que deveria direcionar suas ações àqueles que realmente necessitam da complacência dos governantes.

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