Identidades, Racismo e Discrimação

120 anos depois da abolição o povo negro continua massacrado e esquecido


Identidades, Racismo e Discrimação
Paulo Henrique Costa Mattos

Zumbi
No Brasil a questão racial ainda é vista pela ampla maioria dos brasileiros como algo inexistente. O brasileiro tem preconceito de ter preconceito, mas grande parte dos negros brasileiros não se assume enquanto tal.

Ainda é grande o desconhecimento dos heróis negros do Brasil, como a história de Zumbi dos Palmares, líder maior da resistência quilombola no Brasil. Zumbi tombou em combate em 20 de novembro de 1695, após praticamente 100 anos de resistência do Quilombo dos Palmares e por isso esse dia é celebrado como Dia da Consciência Negra. Mas ainda não há de fato uma ampla consciência negra no Brasil.

A luta de Zumbi foi parte destacada da luta do povo negro na diáspora. A chegada dos primeiros navios negreiros no Brasil marcou também a chegada da forte resistência contra a escravidão. Até hoje, a história do povo negro no Brasil tem sido de luta contra a discriminação racial em suas várias faces. Esta luta só não é maior que a contribuição deste povo no crescimento, construção e desenvolvimento do Brasil. O sangue e suor negro fizeram o Brasil consolidar-se como uma das maiores economias do mundo.

Apesar dos avanços obtidos nos séculos de luta pela liberdade e pela criminalização da prática de racismo, o povo negro segue sendo discriminado e principal vítima das desigualdades sociais, que têm no Brasil um forte componente racial. Ainda é extremamente forte o preconceito contra os negros em nosso país, os próprios negros majoritariamente não assumem sua negritude, geralmente preferindo se auto-intitular de “moreno”, “cor de terra”, “cor de jambo” e até “azulinhos”, menos N-E-G-R-O. É como se assumir a negritude fosse assumir uma doença contagiosa e terrível. E tome chapinha para alisar os cabelos, que, aliás, são chamados de “pixanhim”, “cabelo ruim” e outras pérolas do racismo enrustido.

As mazelas do capitalismo são sempre mais dramáticas para o povo negro. O desemprego é maior e mais irreversível entre os negros. Quando empregados, os negros recebem salários menores dos que os não-negros. Entre as mulheres, que já são discriminadas no mercado de trabalho em relação aos homens, os menores salários são das negras. Entre os estudantes universitários, os negros são uma pequeníssima minoria. Entre os favelados do país, a maioria é negra. Entre as vítimas da violência policial, a esmagadora maioria são jovens pobres e negros. Neste quadro, não é difícil perceber que os jovens pobres das periferias são as vítimas preferenciais do aliciamento para o crime, dos traficantes, das quadrilhas especializadas em furto de automóveis, arrombamento de residências, assalto a mão armada e clientes bem cedo dos coveiros.

Infelizmente a população carcerária que mais cresce no Brasil é a dos pobres, negros e excluídos socialmente. Os bandidos de colarinho brancos, que estão no Congresso e no espaço político nacional, jamais visitam a cadeia, nem em solidariedade aos amigos. Assim, segue o ciclo de opressão, exclusão, repressão e criminalização dos negros. Dados publicados pela Anistia Internacional e pela Justiça Global, organizações que lutam pela defesa dos Direitos Humanos, mostram que entre 1995 e 2003 a população carcerária no Brasil cresceu 95%, enquanto a média mundial no mesmo período ficou entre 20% e 30%. Mais de 90% da população presa são negros, pobres, analfabetos e excluídos da mais elementar dignidade humana.

Recentemente a maior rede de TV do país mostrou um ciclo de reportagens sobre o sistema penitenciário brasileiro, mostrando um estarrecedor quadro de desrespeito aos direitos humanos, violência, bestialização dos detentos e transformação das penitenciárias brasileiras em verdadeiros depósitos de gente. Mas isso tudo ocorre pela indiferença da sociedade que pensa majoritariamente que o papel das prisões é fazer os indivíduos sofrerem e não serem resocializados. Pior que isso só a concepção de que bandido bom é bandido morto!

Assim como outros grupos étnicos discriminados, os negros organizados, politizados e conscientes de sua negritude também depositaram esperanças num governo de esquerda, encabeçado por Lula e formado pelo PT e seus partidos aliados. Apostaram na construção de um projeto alternativo de governo e de poder que pudesse iniciar um processo de reversão deste ciclo vicioso. Infelizmente, o povo negro também foi traído. Lula e o PT, assim como fizeram com o movimento sindical, estudantil, feminista, ambientalista, dentre outros, também cooptaram lideranças do movimento negro, dando-lhes alguns cargos no governo federal, assim como em alguns governos estaduais e prefeituras, ou gabinetes parlamentares. Colocaram alguns negros para fazer figuração, conseguindo assim dividir a resistência popular também neste terreno.

Apesar de o Brasil ser majoritariamente negro, o racismo é uma das práticas e comportamentos mais “nojentos” e dissimulados. O povo negro está em todo tipo de função de trabalho degradante, vivendo nas piores casas, comendo o pão que a miséria amassou, sem condição de freqüentar a universidade paga, sem plano de saúde, sem respeito e sobrevivendo com os programas sociais pífios e assemelhados. Para as populações afro-descendentes só sobraram às medidas assistencialistas superficiais, e cujos recursos somados são inferiores aos gastos destes governos com suas propagandas institucionais. Gastam mais recursos para dizer o que supostamente não são racistas, que estão fazendo alguma coisa do que com o que efetivamente deveria ser feito.

O período, 1995 a 2003, coincidiu com os anos dos primeiros passos da aplicação do neoliberalismo no Brasil, em que o Estado foi se apequenando no atendimento às demandas populares, afastando-se de suas poucas características de bem-estar social, e se agigantando no financiamento da burguesia financeira e na repressão ao povo sem alternativa. De 2003 para cá os superávits fiscais vem se ampliando e a manutenção da agiotagem oficial é garantida com zelo por Lula e sua equipe econômica. Ou seja, o drama dos pobres se aprofunda estruturalmente, a violência também, e nesse drama todos os negros são as maiores vítimas. A mulher negra, a criança negra, o idoso negro, o doente negro, o homem negro são discriminados, esquecidos e tripudiados.

A luta dos negros no Brasil é, portanto, a luta por uma sociedade mais humana e racional, mais justa e democrática. Não há solução possível para o povo negro nos limites da predominância da lógica das elites, que coloca interesses econômicos de grupos privados acima da vida, da civilização e da natureza. A luta do povo negro deve ser pela redução da jornada de trabalho, para ampliar a utilização de mão de obra no mundo do trabalho; deve reivindicar um agressivo projeto de construção e regularização de moradias populares, de urbanização de favelas; deve reivindicar uma rigorosa reforma agrária; deve reivindicar o desmonte da atual estrutura das polícias, culturalmente racistas, desmilitarizando-as e substituindo-as por estruturas democráticas, que sejam responsáveis perante toda a sociedade; deve exigir educação de qualidade, cultura, esporte e lazer para a juventude brasileira.

Os recursos públicos para encaminhar estas medidas estão hoje, como há décadas, sendo carreados para a agiotagem do sistema financeiro, e é lá que devem ser buscados. Por isso dizemos que todo dia é o dia consciência negra. Todo dia é preciso lembrar que a abolição da escravidão foi uma farsa da elite branca do Brasil que já dura 120 anos. Pelas ruas do Brasil, nos grotões e nas favelas urbanas, nos presídios e periferias o povo negro continua sendo massacrado, espoliado e triturado por essa imensa máquina de moer carne humana chamada capitalismo. Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós.


Paulo Henrique Costa Mattos
é professor de sociologia do Centro Universitário UNIRG e presidente do PSOL-TO.

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