Lei Seca à brasileira

Feita de forma temerária e, talvez, apressada, medida infringe direitos fundamentais individuais do cidadão
Juliana Mancini Henriques, Advogada
A Lei 11.705/08 (publicada em 20/6/08, quando entrou em vigor), alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) – Lei 9.503/97 –, para introduzir novas sanções a quem dirige sob influência de álcool. A infração gravíssima disposta no artigo 165 faz com que o condutor do veículo perca sete pontos na carteira, arque com multa administrativa de aproximadamente R$ 1 mil, além da retenção do veículo e recolhimento da carteira nacional de habilitação (CNH). Para que seja configurada a infração, basta que o condutor tenha ingerido qualquer quantidade de álcool, como está expressamente disposto no artigo 276 do CTB, também alterado pela Lei 11.705/98. Já o artigo 306 do CTB, também alterado pela nova lei, dispõe que constitui crime passível de pena de prisão de seis meses a três anos o motorista que dirigir veículo com concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas.

O primeiro aspecto a ser analisado é o fato de a lei transformar cidadãos de bem em criminosos. Isto porque, qualquer indivíduo que tenha saído para um jantar de negócios, ou almoço com família ou happy hour com os amigos e tenha consumido mais de dois chopes, será necessariamente caracterizado como criminoso, podendo inclusive ser preso, mesmo sem ter provocado qualquer acidente de trânsito. Ora, se o espírito da lei era punir aqueles que causam acidentes por estarem embriagados, deve-se aplicar os requisitos somente aos causadores do acidente e não ao cidadão que sai para se divertir e consome álcool em quantidades tais que não causam alteração significativa em seu comportamento ou seus reflexos.

O segundo aspecto, e mais relevante, é a infringência à presunção de inocência consagrada no artigo 5º da Constituição Federal em seu inciso 47 e a garantia de devido processo legal, ampla defesa e contraditório disposto no inciso 45. O que se verifica, depois de uma leitura da lei, é que a arbitrariedade vem imperando nos novos dispositivos. Um exemplo: se o indivíduo é autuado em uma blitz e se recusa a realizar o teste do bafômetro – uma vez que ele não é obrigado a fazer prova contra si mesmo, de acordo com o Tratado da Costa Rica –, o policial poderá, a seu livre arbítrio, declarar que o indivíduo estava embriagado. Porém, sem a realização de qualquer exame, como poderá o policial afirmar se existia ou não nível de álcool no sangue acima de seis decigramas? Testemunhas, apesar de serem meio de prova admitido em direito, não tem o condão de comprovar a existência de álcool no sangue de alguém, no percentual permitido por lei. Há ainda os que afirmam que a simples negativa em realizar o exame caracterizaria crime de desrespeito à autoridade, o que não se pode admitir sob pena de infringência à Constituição, como já dito. Convenhamos que o agente da autoridade de trânsito não é tecnicamente capacitado para auferir o estado alcoólico de uma pessoa, salvo se a embriaguez for evidente. O policial não tem fé pública, embora a nova lei queira lhe atribuir esse predicado. Há que se garantir a ampla defesa e contraditório, desde o momento da autuação, para que, depois da declaração da autoridade policial de que o motorista ingeriu álcool em percentual superior ao determinado por lei, o cidadão possa se defender devidamente. A medida é fundamental para a transparência das autuações, característica do Estado democrático de direito, e para que seja evitada a corrupção tão, infelizmente, comum no Brasil.

O que se verifica, portanto, é uma tentativa do Estado em aplicar normas coercitivas na tentativa de evitar os acidentes de trânsito. Porém, feita de forma temerária e talvez apressada, uma vez que que infringe direitos fundamentais individuais do cidadão, que não podem ser desprezados em função de um suposto interesse coletivo.

Nenhum comentário: