Espaço Social

Prostituição globalizada

Roma / Sociedade – O tráfico de escravos que houve entre os séculos XVI e XIX é um dos escândalos mais clamorosos da história da humanidade. Caçados de forma violenta na África, foram levados com sofrimentos inárraveis à América, a fim de que trabalhassem em condições desumanas em minas e plantações. Calcula-se que, ao longo dos 400 anos que durou esse tráfico, as vítimas chegaram a 11,5 milhões, entre homens e mulheres. Este é um episódio que ainda pesa de forma sensível na consciência da humanidade e se acusa os que estiveram implicados em tamanha crueldade e de uma total falta de sentido cristão. Mas, embora seja um delito horrível, resulta de modesta "quantia" em termos numéricos se considerarmos que na atualidade, no sudeste asiático, em um decênio, o tráfico de mulheres destinadas à prostituição chegou a 33 milhões de vítimas. Uma ferida na sociedade.

R. Poulin, professor de Sociologia da Universidade de Ottawa (Canadá), afirma: "No decorrer dos três últimos decênios, nos países do hemisfério sul, houve um crescimento vertiginoso da prostituição e da trata de mulheres e meninos com tal objetivo. Um discurso análogo é válido também para os países da ex-União Soviética, da Europa Central e Oriental e dos Bálcãs há menos de um decênio. […] Também se tende a prostituir meninos cada vez mais jovens, e a introduzí-los no mercado da pornografia […] a indústria da prostituição infantil explora 400 mil meninos na Índia, 100 mil nas Filipinas, entre 200 e 300 mil na Tailândia, 100 mil em Taiwán, e entre 244 e 325 mil nos Estados Unidos. Na República Popular da China os meninos que se prostituem são entre 200 e 500 mil, no Brasil vão de 500 mil a 2 milhões. 35% das prostitutas cambojanas têm menos de 17 anos e 60% das albanesas que se prostituem na Europa são menores de idade".

Alguns estudos estimam que uma criança que se prostitui vende seus "serviços sexuais" a 2.000 homens. Em 1996, um relatório do Conselho da Europa estimava que, no Ocidente, se prostituíam umas 100 mil crianças da Europa do Leste. Uma análise apresentada pela UNICEF (2001) no Segundo Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual de Menores com fins Comerciais, realizado em Yokohama (Japão), estimava em mais de um milhão os menores —principalmente meninas— obrigadas a prostituir-se através da indústria do sexo. Em 2004, as cifras giravam em torno de dois milhões de crianças. Hoje, pelo menos um milhão de crianças se prostitui só no sudeste asiático, sendo que a Índia, Tailândia, Taiwán e Filipinas são os países mais golpeados por este problema Cf. R. POLUIN (edit.), Prostituzione. Globalizzacione incarnata, Milan, 2003. A prostituição da qual se fala neste artigo é a não–voluntária; a trata, por parte de indivíduos e organizações criminosas, de mulheres e de menores para destiná-los ao exercício da prostituição, no interior do próprio país ou no exterior, inclusive em países muito longínquos. Há também outra forma de prostituição —livre e voluntária— que se pratica livremente não na rua, mas em casa, através da Internet e embora dela se fale com freqüência é legal em alguns países.

A PROSTITUIÇÃO, UM FENÔMENO DE MASSAS

Na realidade, hoje a prostituição chegou a ser um fenômeno de massas e se estendeu pelo mundo inteiro. Por sua vez, a pornografia se difundiu amplamente por toda a sociedade.

Os lucros destas duas indústrias são altíssimos, elas se encontram entre as mais rentáveis do mundo. Em 2002, os rendimentos derivados da prostituição se acercavam aos 60 bilhões de euros e os da pornografia chegaram aos 57 mil milhões.

O volume de negócio das agências de turismo sexual que operam através da Internet é de um bilhão de euros anuais. Ao passo que os rendimentos pelo tráfico de pessoas destinadas à prostituição variam entre 7 e 13,5 bilhões de euros. Dezenas de milhões de seres humanos, principalmente mulheres, meninos e meninas, são submetidos aos traumas físicos e psicológicos , derivados do comércio do sexo.

Estimava-se que em 2002 o número de prostitutas no mundo era de 40 milhões, e que sua clientela crescia a ritmo sustentado. Cada ano 500 mil mulheres, meninos e meninas são introduzidos no mercado do sexo pago nos países da Europa ocidental. 75% das mulheres vítimas deste tráfico têm menos de 25 anos e, entre elas, uma porcentagem notável, difícil de determinar, é menor de idade. Cerca de quatro milhões de mulheres e meninos(as) são vítimas todos os anos do tráfico mundial destinado à prostituição.Para muitos países a prostituição é hoje um componente importante do Produto interno bruto (PIB). Deste modo, nos Países Baixos a indústria da prostituição constitui 5% do PIB; no Japão a porcentagem está entre 1 e 3%. Na Dinamarca a indústria de pornografia é a terceira em importância. Na Hungria teve um desenvolvimento rapidíssimo, chegando a ser um dos lugares mais apreciados pelos produtores de filmes pornográficos. A indústria de sexo é importante. Muitas empresas são internacionais e cotizadas nas bolsas, obtendo muito lucro e rendimentos consideráveis em moedas fortes, com efeito tanto nas balanças de pagamentos como nas contas correntes de diversos países. Por este motivo várias deles as consideram vitais para sua própria economia.


A PROSTITUIÇÃO NA AMÉRICA LATINA

Quanto à América Latina, a prostituição está presente em todos os países e pode assumir duas formas: a da tráfico interno, levando mulheres a diversas partes do próprio país, e a do tráfico externo, no qual as mulheres são transferidas de um país a outro. Tudo isso com o fim de satisfazer uma demanda cada vez mais ampla, devido ao mercado internacional. Para conseguir tudo isto, redes mafiosas americanas, européias e asiáticas atuam nos países latino-americanos. Os centros mais antigos de tráfico —países fornecedores— são: Brasil (que entre outras coisas é a meta do turismo sexual de cerca de 80 mil italianos), Suriname, Colômbia, República Dominicana e Antilhas. Os países destinatários são Espanha (onde 70% das prostitutas são originárias da América Latina), Holanda, Israel, Coréia, Japão e Estados Unidos.

Nestes países, os traficantes publicam anúncios nos jornais, propondo um trabalho no estrangeiro, que apresentam como algo muito rentável. No entanto, as mulheres que se deixam enganar encontram é uma cruel escravidão. Outras mulheres chegam aos países para onde foram destinadas, através de uma "adoção" simulada ou de um "casamento" simulado, que é uma das mais horríveis e ainda pouco conhecidas formas de escravidão. Meninas de quatro anos são obrigadas a viver com seus próprios "maridos", com freqüência como prisioneiras. Estas meninas logo ficam grávidas, ao chegarem à maturidade sexual, correndo um grave perigo para sua vida, pois se sabe que uma menina menor de 15 anos apresenta uma gravidez com riscos cinco vezes maior ao de uma mulher de 20 anos. Em alguns sites de Internet se destaca a capacidade das mulheres propostas como escravas para resistir à dor e à tortura (para a satisfação dos clientes sádicos) e sua capacidade de fazer qualquer coisa.

Em relação ao México, o tráfico sexual mais intenso se realiza ao longo dos três mil quilômetros de fronteira com os Estados Unidos. Especialmente em Cidade Juárez e Tijuana, centros de lazer e diversão para os turistas e militares americanos, aí operam os "contrabandistas de homens" (existem de 300 a 400 só em Tijuana). "Por um lado, as cidades fronteiriças recebem pessoas que vêm de todo o México e se estabelecem ali, esperando condições propícias para cruzar a fronteira legal ou ilegalmente. Por outro lado, nestas mesmas cidades ficam as centenas de clandestinos repatriados mensalmente dos Estados Unidos. Há mulheres menores de idade e meninos entre as pessoas que têm a intenção de cruzar a fronteira e também entre os repatriados que são arrastados à prostituição pelos contrabandistas em Cidade Juárez, Tijuana e Novo Laredo. Muitíssimas delas, jovens que trabalham nos locais destas cidades, têm só 13 ou 14 anos. Segundo diversos depoimentos, estima-se que um quarto das prostitutas de Tijuana são menores de idade. Aos olhos dos protetores, estas meninas recrutadas com 11, 12 ou 13 anos, quando cumprem 18 já são consideradas "velhas". Alí também foram encontradas crianças utilizadas para a realização de material pronográfico por parte de exploradores tanto americanos como japoneses" (E.Azaola,Prostituzione al confine tra México e Statu Uniti, ivi, 236).

CAUSAS DO AUMENTO DA PROSTITUIÇÃO

Depois do comércio de armas e de drogas, a prostituição em todas suas formas (feminina, de meninos e meninas, masculina) é o terceiro negócio mais difundido e lucrativo. A prostituição hoje se globalizou porque se difundiu por todo o planeta e sobretudo porque as vítimas da prostituição são levadas de um país a outro e de um Continente a outro de acordo com as exigências da demanda sexual -que é maioritariamente masculina- e as expectativas de maiores lucros. Também está globalizada porque utiliza todos os instrumentos de comunicação, principalmente a Internet, e está nas mãos de uma rede internacional de traficantes que opera no plano mundial e que em muitos países conta com o apoio de servidores públicos estatais corruptos, especialmente das forças policiais.

O que mais impressiona é que o tráfico de pessoas para a exploração sexual é um fenômeno em crescimento. Segundo as estimativas da ONU, os lucros anuais pela exploração sexual têm hoje um volume entre 5 e 7 bilhões de dólares e o número de pessoas envolvidas gira em torno de 4 milhões. Como explicar a extensão do fenômeno do tráfico de pessoas para a exploração sexual e seu crescimento?

A primeira causa e a mais importante que leva tantas pessoas a se prostituirem é a pobreza na qual vivem muitas famílias e a globalização que, com a transferência de capitais e de oportunidades de trabalho de um país a outro, de acordo com as conveniências econômicas e financeiras, tende a agravar provocando o abandono do campo e a mudança para as cidades.

Uma vez que o traficante tem as vítimas em suas mãos, coloca-as no círculo da prostituição, usando uma série de mecanismos de controle: confisca-lhes os documentos de identidade, de viagem e sanitários; obriga-as a reembolsar os gastos de transporte, alojamento, alimentos e bens de primeira necessidade; fazem ameaças, dizendo que vão denunciá-las às autoridades de imigração, devido à sua situação de clandestinidade, e em caso de rebelião, castiga com estupro e violência física e moral, vigilância contínua e outros métodos de restrição da liberdade de movimento, pagamentos por alojamento, comida, vestidos, remedios ou tratamentos médicos. Na realidade, as redes de traficantes sempre recorrem à violência, às ameaças e intimidações com total impunidade, sem que suas vítimas tenham nenhuma possibilidade de denunciar seus exploradores; não há possibilidade de utilizar sua força nem a valentia necessária, pois não têm a quem se dirigir ou não sabem como fazê-lo, especialmente se foram levadas a países diferentes do seu ou se viram obrigadas a prostituirem-se na rua ou nos bordéis com horários extenuantes.

A segunda causa do crescimento do fenômeno da prostituição é o enorme desenvolvimento dos meios de transporte que torna possível o deslocamento em poucas horas de um continente a outro. Isto oferece aos usuários a possibilidade de chegar em pouco tempo a lugares acondicionados para ter experiências sexuais particularmente hard que seriam consideradas vergonhosas em caso de serem realizadas na própria casa, e tudo isso a preços moderados.

A terceira causa do crescimento do fenômeno da prostituição é a demanda dos bordéis, dos lugares de lazer e também da indústria hoteleira; uns e outros demandam cada vez mais material novo e cada vez mais atraente para as sempre crescentes demandas dos clientes que procuram experiências "particulares". Tudo isso leva consigo a necessidade de uma contínua troca e de um rejuvenecimiento crescente do pessoal que trabalha com o prazer. Não é casualidade que a cada ano entrem na Europa 500 mil pessoas novas, quase sempre menores de idade, e que outras, já exploradas e doentes, sejam expulsas do círculo da prostituição e acabam abandonadas nas ruas.

A quarta causa do aumento da prostituição é a legalização efetuada em alguns países (Holanda, Alemanha, Suíça, Austrália, Nova Zelândia, Itália). R. Poulin contribui a respeito com o exemplo da Holanda: "2.500 prostitutas em 1981, 10 mil em 1985, 20 mil em 1989 e 30 mil em 2004. O país conta com 2 mil bordéis e pelo menos 7 mil locais dedicados ao comércio do sexo. 80% das prostitutas são de origem estrangeira e 70% delas são irregulares, vítimas do tráfico da prostituição. Em 1960, 95% das prostitutas da Holanda eram holandesas, em 1999 só 20%. A legalização devia acabar com a prostituição de menores, no entanto, Defense for Children Internacional Netherlands estima que de 1996 a 2001 o número de menores que se prostituem passou de 4 mil a 15 mil. Deles, pelo menos 5 mil seriam estrangeiros. No primeiro ano da legalização, as indústrias do sexo tiveram um crescimento de 25%. Na Dinamarca, no decorrer das últimas décadas, o número de prostitutas de origem estrangeira, vítimas do tráfico, duplicou-se" (R. Polin, Protituzione, cit., 14 s.3).

Finalmente, a presença de forças militares ocidentais ou internacionais num número notável de países não é a última causa do crescimento do fenômeno da prostituição. No sudeste asiático, a indústria da prostituição decolou graças às guerras da Coréia e do Vietnã e aos assentamentos de tropas ocidentais na Tailândia e nas Filipinas. Nos anos noventa 18 mil prostitutas coreanas estavam a serviço dos 43 mil militares americanos presentes nesse país. A Organização Internacional para as Migrações (IOM) calcula em cerca de 10 mil o número de prostitutas clandestinas na Bósnia; estima também que 250 mil mulheres, meninos e meninas da Europa do Leste são vítimas do tráfico que passa, através de Sérvia e dos países vizinhos, e que em grande número terminam na Bósnia e no Kosovo, nas estruturas recreativas dos soldados.

UM GRAVE PROBLEMA DE CONSCIÊNCIAO fenômeno da prostituição de mulheres e de menores dos dois sexos adquiriu proporções gigantescas. Além de estar também nas mãos de organizações criminosas competentes e sem escrúpulos morais - como são as grandes máfias asiáticas, européias e centro-americanas- tem uma enorme capacidade de desenvolvimento pela frente, a custa de milhões de seres humanos que se encontram entre os mais débeis e indefesos. No entanto, tem-se a impressão de que esta nova forma de escravidão, talvez mais dura, mais cruel e mais desumana do que outras formas do passado, não é conhecida em sua trágica realidade e, sobretudo, não é considerada como o que realmente é: a negação da pessoa humana, reduzida a objeto de prazer, sobre a qual o homem pode desafogar seus instintos mais perversos e cruéis e seus desejos mais vergonhosos.

Hoje em dia realizam-se muitas manifestações de protesto contra as grandes e pequenas injustiças que existem no mundo. Luta-se pelos problemas gravíssimos de contaminação atmosférica, desmatamento, direitos dos animais… Mas sobre o problema humano que supõe o fenômeno da prostituição pesa um silêncio quase absoluto. Parece até que as pessoas se incomodam quando alguém fala a esse respeito. Dá a impressão de que se trata de um assunto inconveniente, de algo politicamente incorreto. Dir-se-ia que é inútil falar dela já que sempre existiu e sempre existirá. Mas não parece inútil, é um dever, que pelo menos alguém eleve uma voz de protesto contra um fenômeno maligno e desumano que talvez encontre no silêncio geral sua justificativa ou pelo menos sua tácita aprovação.

Dois documentos recentes da Igreja manifestam sua condenação explícita. Por uma parte, o Concílio Vaticano II condenou "tudo aquilo que ofende a dignidade humana, como as condições de vida desumanas, a escravidão, a prostituição, o mercado das mulheres e dos jovens" (GS 27). Por outra parte, o Compêndio de Doutrina Social da Igreja (2004) destaca que "a solene proclamação dos direitos do homem se contradiz por uma dolorosa realidade de violações, difundidas por todas partes através de formas sempre novas de escravidão, como o tráfico de seres humanos, a prostituição" (DSI 158). O documento acrescenta mais adiante as seguintes palavras: "Inclusive nos países onde se vivem formas de governo democrático, estes direitos nem sempre são totalmente respeitados" (Cf. Pontifício Conselho para a Pastoral de Migrantes e Itinerantes, Orientações para a pastoral da rua, C. do Vaticano, 2007: em especial a parte II). Daí que é um dever perguntar-se pelo "nem sempre" ou o "não totalmente".

Por isto deve-se manifestar uma profunda gratidão às pessoas e associações que, com grandes sacrifícios de tempo e de dinheiro, ocupam-se do problema da prostituição em cada país, procurando tirar as prostitutas da rua, liberando-as de seus malvados e cínicos protetores e dando-lhes a possibilidade de um trabalho honesto. É esta uma tarefa que comporta grandes dificuldades e na qual é fácil encontrar-se com o fracasso devido às fortes ameaças dos protetores, que com freqüência supõem mais abusos sexuais, golpes, torturas e inclusive a morte, e para suas famílias supõem uma grande quantidade de danos. O medo aos protetores, devido à falta do mais mínimo sentido moral e de humanidade, impede muitas vítimas da prostituição abandonar seu triste trabalho. Isto não tira nada do apreço que se deve a quem trabalha para ajudar a superar estas condições, cristãos que vêem nas vítimas da prostituição filhos e filhas de Deus, aos quais se deve restituir a dignidade humana e cristã que lhes foi negada.

__________________________
Giuseppe de Rosa, S.J.
Tradução: Antonio Delfau, S.J. Texto completo na Revista Mensaje, 568, maio de 2008. Acesse www.mensaje.cl.

Nenhum comentário: