Algemas do retrocesso

Sociedade não pode aceitar tentativa de restabelecer o estado policial
O fato de ter sido tomada em meio ao grande impacto que a prisão de um banqueiro, uma megainvestidor e um ex-prefeito de São Paulo, todos amplamente expostos pela mídia, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dar orientação ao uso mais civilizado de algemas, tem sido maldosamente usado por pessoas inescrupulosas. Ficou aparentemente fácil turvar a real importância e validade da posição da mais alta corte do país, sob o discurso tão inconsistente quanto calhorda de que “a Justiça se preocupou com o assunto porque pessoas ricas e de destaque na sociedade passaram a ser presas”. É um desserviço à inteligência jurídica do país e ao avanço institucional que a cidadania brasileira tem conseguido, desde a volta do estado de direito e das boas práticas republicanas. Por isso mesmo, não podem ser acolhidas iniciativas que, insensata ou equivocadamente, atiram contra a postura técnica e eticamente irretocável dos ministros do STF.

Na verdade, o STF determinou, na sessão plenária de 7 de agosto, que o uso de algemas não deve ser a regra e, sim, a exceção, ao julgar pedido de habeas corpus para a anular uma decisão judicial contra Antônio Sérgio da Silva, condenado a 13 anos de cadeia por homicídio triplamente qualificado. Sua defesa alegou que o fato de o réu ter ficado algemado durante o julgamento teria prejudicado sua defesa. Ao concluir que não pode usar algemas com o intuito de constranger, condenar moralmente ou espetacularizar o ato da prisão, o STF preparou uma súmula vinculante à qual aderiram todos os 11 ministros. Para a corte não restou dúvida de que o uso abusivo de algemas nos atos policiais fere princípios fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e, portanto, deve se restringir aos casos de risco de fuga ou de perigo de morte dos agentes e cidadãos.

É, portanto, inaceitável a atitude de pessoas que, por sua posição e nível de conhecimentos, deveriam defender e valorizar os ganhos da cidadania, nada mais fazem do que produzir aberrações que lembram os tempos da ditadura e tentam impor um estado policial em nada compatível com a democracia e o respeito humano. É o caso do deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), delegado licenciado da Polícia Federal, que pretende bancar um projeto de lei que autoriza a autoridade policial cometer exatamente a barbaridade condenada pela Justiça. Quer simplesmente anular a súmula vinculante do STF e devolver à truculência policial seu antigo instrumento de auto-afimação com que praticava a humilhação e o constrangimento de qualquer um que, mesmo tendo rumo certo e sabido e nem prestado ainda depoimento, recebia tratamento que nem às feras se usa mais dispensar. A quem serve o senhor Itagiba ou a que propósitos se vincula seu inoportuno projeto não se sabe ao certo. O que a cidadania só pode esperar é que a maioria dos homens de bem, que só está nas bancadas do Parlamento graças à democracia que os elegeu, rejeite o estado policial e repudie a truculência, condenando ao lixo do esquecimento e do desprezo essa tentativa de retrocesso.

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