José Arthur di Spirito Kalil, Advogado criminalista, diretor do Instituto de Ciências Penais e doutorando em Direito pela UFMGA Lei 11.705/08, como se sabe, promoveu mudança na disciplina do crime de embriaguez ao volante, que agora é assim tipificado: “Art. 306 – Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
Fazendo-se cotejo entre a modalidade revogada e a atual, verifica-se que foi suprimida a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. Nota-se também que foi substituída a fórmula da direção “sob influência de álcool” pela comprovação da concentração de álcool no sangue em quantidade igual ou superior a 6dg/l.
A imediata conclusão a que se chega a partir das alterações típicas é a de que o crime em apreço deixa de ser classificado como de “perigo concreto”, para incluir-se no rol dos crimes de “perigo abstrato”. Nessa última modalidade, o perigo ao bem jurídico é presumido a partir da prática da conduta ali incriminada. Assim, à primeira vista, constatado o grau de embriaguez indicado no tipo, estaria configurado o crime.
Todavia, o princípio da ofensividade não pode ser esquecido. Tal princípio, que limita o poder punitivo estatal, é deduzido em nível infraconstitucional dos artigos 13 e 17 do CP. O primeiro dispositivo assegura que a existência do crime depende de um resultado, identificado como a lesão ou perigo ao bem juridicamente tutelado. Já o dispositivo legal que define o crime impossível (artigo 17, CP) condiciona a punibilidade da tentativa à idoneidade dos meios utilizados pelo agente e à existência do objeto material com as características exigidas pelo tipo. Vale dizer, a tentativa, para ser punível e dar ensejo a um delito possível, deve apresentar potencialidade lesiva ao bem jurídico.
O princípio da ofensividade é consentâneo com a noção de tipicidade material. Não havendo a potencialidade lesiva que se quer evitar aos bens de terceiros, não haverá tipicidade (princípio da ofensividade). A conseqüência prática de tal afirmação é de suma importância, porque um fato pode coincidir com o modelo atual de conduta previsto no tipo do artigo 306 do CTB (tipicidade formal), sem que se complete o juízo de tipicidade. Para a ocorrência desta, será necessário algo mais: a verificação in concreto da potencialidade lesiva da conduta praticada (tipicidade material).
Vêm-se na jurisprudência algumas decisões conforme esse entendimento versando sobre crimes contra a fé pública. Note-se que os tipos que definem os crimes de falsidade documental (artigo 297, CP) e de falsidade ideológica (artigo 299) não contemplam a referência ao causar perigo à fé pública. Mas é do conhecimento dos que se dedicam a esse estudo a imprescindibilidade de tal constatação para concluir-se pela tipicidade. Assim, nos crimes de falsum em que a contrafação for irrelevante, inócua, que não repercute no mundo jurídico, não haverá tipicidade (material).
Em conclusão, conquanto o tipo penal do artigo 306 do CTB não exija a constatação do perigo concreto, o fato é que o intérprete e o seu aplicador não estão dispensados de fazê-lo, em conformidade com o princípio da ofensividade.
Registre-se que parte dos crimes de perigo abstrato admite a prova em contrário da existência do perigo; nesse caso, a presunção é relativa (juris tantum) e a defesa possui a possibilidade de demonstrar que a conduta praticada não põe em risco a incolumidade das pessoas no tráfego viário, por exemplo.
Mas há casos outros em que a presunção do perigo é absoluta, ou seja, não admite a prova em contrário. Alega-se que se insere nesse contexto o crime de tráfico de drogas. Desse modo, quaisquer das condutas incriminadas pelo artigo 33 da Lei Antidrogas trariam ínsito um perigo à saúde pública.
É de se ver a enorme limitação ao direito de defesa proveniente dos crimes de perigo abstrato. Tais delitos confrontam-se seriamente com o princípio da não-culpabilidade, e mesmo com o princípio da legalidade. Daí por que a sua previsão deve ser feita com parcimônia, conforme recomendam os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade.
Para a incriminação do perigo abstrato, há regras a serem observadas na sua previsão. É necessário que não seja eficaz a incriminação da conduta através de um tipo penal de dano ou, ainda, de perigo concreto. Proíbe-se, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, o excesso representado pela incriminação do perigo abstrato, quando possível outra modalidade menos cerceadora da liberdade. Nesse sentido, caso a incriminação propiciada pelo tipo de perigo concreto mostrar-se adequada a reprimir tal conduta, então será essa a maneira de se fazer a incriminação. É a nossa posição, sobretudo porque a incriminação da embriaguez ao volante como perigo concreto reveste-se de maior taxatividade.
De outro lado, pondera-se que a atual infração administrativa prevista no artigo 165 do CTB mostra-se eficaz no combate à embriaguez ao volante, em face do caráter dissuasório evidenciado no alto valor cominado à multa.
Em suma, há que se exigir do intérprete a constatação do perigo concreto quando aparentemente a conduta do motorista amolda-se ao tipo do artigo 306 do CTB. É de se cobrar, nesses casos, a prova de que a direção empreendida colocava em risco a segurança do tráfego viário, seja por excesso de velocidade, seja porque o motorista transitava pela contramão ou pela calçada, ou porque avançava um sinal vermelho, etc.
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