Só agora, no século 21, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a polícia não pode constranger um cidadão, colocando-lhe algemas desnecessariamente. A demora não foi por maldade dos juízes. Eles simplesmente não tinham notado ainda a existência das algemas no cenário policial brasileiro. Elas eram invisíveis nos pulsos de centenas de presos que aparecem todas as noites no noticiário. Foram necessários 400 anos de correntes de ferro maltratando escravos, durante a Colônia e o Império, e 120 anos de República, para que os juízes brasileiros percebessem as algemas que estavam nos punhos de pobres sem bermuda, sem camisa, inclusive nas últimas décadas, nas telas da televisão, quase todos os dias. Esse atraso na percepção não decorre apenas da falta de sensibilidade que caracteriza a elite brasileira, mas também do fato de que, na nossa lógica jurídica, os juízes só vêem o que é mostrado sob a ótica e o argumento de advogados. Temos uma parte da população invisível aos olhos da elite, inclusive parlamentares, juízes, políticos, professores universitários. Não temos justiça, temos um marco legal. E ele depende da capacidade dos advogados que representam os réus. Quando a ilegalidade é cometida contra quem paga um bom advogado, os juízes do Supremo tomam a decisão e, democraticamente, determinam que o benefício da legalidade amplia-se para toda a população. A Justiça não é discriminatória contra os pobres; simplesmente, eles são invisíveis para ela. Os olhos vendados da deusa da Justiça só percebem parte da realidade, aquela que chega a eles pelos argumentos dos bons advogados, representando a parte rica da sociedade que pode pagar altos honorários.
Foi preciso que a Polícia Federal usasse algemas em suspeitos ricos e bem vestidos, e que seus advogados protestassem, para que elas fossem percebidas e abolidas tanto nos ricos quanto nos pobres. Sorte do pobre, quando seu julgamento coincide com o processo contra um rico pela mesma causa. Não ser atendido e morrer na porta de um hospital, por falta de dinheiro ou de seguro médico, não é ilegal; portanto, a Justiça brasileira não vê, nem age. Até que um rico brasileiro morra na porta de um hospital e um bom advogado entre com processo pedindo indenização para seus herdeiros. Só assim será possível que a Justiça se pronuncie considerando ilegal a omissão de socorro, tanto para o rico que provocou o assunto, quanto para os pobres que, democraticamente, receberiam os benefícios das legalidades. Não por justiça, mas porque o fato ficou visível e adquiriu uma lógica legal. Sem o advogado e seus argumentos bem convincentes, o morto na porta de um hospital é um ente invisível, seja ele rico ou pobre. Na saúde, se passou algo parecido no país. Foi quando uma epidemia de poliomielite assolou sem discriminação de classe social as crianças no Paraná, nos anos 1970, quando os autoritários dirigentes militares viram o que os civis democratas nunca tinham percebido. Iniciaram então a mais ampla campanha de erradicação da poliomielite já feita no mundo. O Brasil também é exemplo mundial no atendimento público aos portadores de HIV, porque o vírus não escolhe classe social. As doenças dos pobres só são vistas quando também atingem os ricos.
Por isso, não há um programa radical para a erradicação do analfabetismo, nem para que todos os brasileiros, independentemente da classe social, cheguem ao final do ensino médio em escolas de alta qualidade. A falta de escola é um problema dos pobres, não é visto pela Justiça nem representado pelos advogados. A algema mental continua sendo permitida, pela omissão dos governantes. É a pior de todas as algemas – porque é invisível, tira a liberdade que vem do conhecimento e dura décadas –, e só atinge os pobres. Os juízes não têm forma de perceber a injustiça porque o assunto não chega a eles. Nenhum dos advogados que criticou o uso de algemas em suspeitos ricos denuncia a falta do serviço de educação para os pobres. A Constituição garante o direito à educação, o poder público se omite e a criança permanece analfabeta até a idade adulta, mas esse fato continua invisível à Justiça. Está na hora de um bom advogado entrar no Supremo pedindo uma indenização em nome de alguém mantido algemado pela omissão do poder público que não lhe garantiu educação. Talvez então se junte ao habeas corpus para os ricos, o habeas mens para os pobres; pois libertar a mente é tão importante quanto libertar o preso. |
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