Contra os preconceitos, a música

Contra os preconceitos, a música

por jpereiraÚltima modificação

Madina N'Diaye, artista do Mali, desafiou a ordem estabelecida e decidiu tocar a Kora, proibida para as mulheres

Madina N'Diaye, artista do Mali, desafiou a ordem estabelecida e decidiu tocar a Kora, proibida para as mulheres


Fernanda Campagnucci,
de Lyon (França)

Bébé dirige um táxi, Astan é carpinteira, Bintou é deputada, Fanta é pilota pára-quedista. E Madina N'Diaye, cantora maliana que as homenageia em sua música, toca a Kora, um instrumento tradicionalmente proibido para as mulheres em seu país.

Compositora e intérprete apaixonada pelo ritmo mandingue, Madina encantou os franceses com sua voz pura e seu engajamento pela causa feminina desde 2003. Ela havia acabado de perder a visão definitivamente após uma grave infecção nos olhos, no dia 24 de outubro de 2002. A cegueira, porém, era apenas mais um dos obstáculos a enfrentar. Para fazer sua música, ela contrariou a casta dos griôs - artistas que se dizem detentores da permissão para tocar o instrumento. "Chegaram a dizer que eu fiquei cega por causa da minha insistência", conta.

A Kora, que seria o equivalente de uma harpa, possui 21 cordas e é confeccionada com fios de pesca e uma cabaça revestida de couro de vaca. Um dos "virtuosos da Kora", Toumani Diabaté, presenteou Madina com o instrumento em 1993, uma surpresa que a fez chorar. Treze anos depois, foi com esse presente que Madina fez seus shows na França e gravou seu primeiro álbum, Bimogow.

DESCOBERTA

Tudo começou numa escola da periferia de Bamako, capital do Mali, no bairro de Moribabougou. Uma professora pediu a Madina que cantasse em uma apresentação, e desde então ela passou a ser solicitada para outras manifestações e cerimônias oficiais da escola, até entrar para um grupo de teatro.

Mas a música teve que esperar. Madina tentou seguir seus estudos em uma Escola de Administração, mas não conseguiu passar nos exames. No Instituto de Jovens Cegas (IJA, sigla em francês), onde fez parte do ensino fundamental por já apresentar algumas dificuldades com a visão, disseram que ela tinha talento para a música. "Eles estavam convencidos de que eu poderia ter uma carreira artística brilhante e insistiram para eu entrar no Instituto Nacional de Artes (INA). Mas naquele momento eu estava determinada a estudar Contabilidade!", brinca.

Madina conseguiu um trabalho de gerente em um posto de gasolina, até ser convencida pelos professores do IJA a estudar música. "Uma colega minha da INA dizia que eu perdia meu tempo, que uma mulher não podia tocar este instrumento sagrado: a Kora é considerada como uma mulher, e a sociedade não poderia tolerar que uma mulher se apaixone por outra". Para Madina, não há feminilidade nenhuma na Kora, mas ela também não vê ali nenhuma masculinidade. A música, diz, é para todos.

COMPROMETIMENTO

Suas letras falam da bravura e a da abnegação das mulheres e celebram o amor e a paz que "fazem tanta falta para a humanidade". Ela se opõe, também, a todo tipo de discriminação, e aborda a migração dos povos em várias canções. "Os homens pensam que as mulheres são incapazes de fazer o que eles fazem. Mas eu, Madina, eu toco a Kora...", diz, em Mussow (Glória às mulheres). Em Tounkan (êxodo, ou exílio), Madina denuncia os abusos cometidos pelas autoridades francesas que repatriam imigrantes clandestinos à força, em vôos fretados.

Para ela, a arte é antes de tudo engajamento: "é um meio de expressão de suas convicções sócio-políticas e culturais. Eu sou uma artista engajada e uma mulher emancipada". E emancipar-se significa poder exercer as mesmas profissões que os homens, segundo Madina N'Diaye. "Tocando a Kora, eu levo a vida com meu suor, como os homens. É o que temos em comum com eles. Fora isso, um homem e uma mulher se completam no lar e na vida".

Essa mulher de fala tranqüila passa longe do conformismo. "Em vez de me abater, as discriminações e toda essa maldade gratuita só me fizeram redobrar minha vontade de aprender a tocar a Kora, esse instrumento místico e misterioso".

Madina nunca se desanimou após a perda da visão, que ela afirma ter melhorado muito sua música. "Antes, se uma corda da Kora se soltava, eu não era capaz de colocá-la de volta. E deixar de ver foi, de uma certa forma, uma oportunidade de viver melhor, com uma dupla sensibilidade". Ela não se separa do seu "ditafone", em qualquer viagem que faça: a qualquer momento, a qualquer som, a inspiração pode aparecer e é bom que o gravador esteja la.

E é so a Kora que é proibida às mulheres, no Mali? Claro que não, Madina diz, apontando em seguida para o kamalen n'goni um instrumento de seis cordas, encostado na parede. "Na minha língua, kamalen n'goni quer dizer 'instrumento tocado pelos homens'. Pois eu o toco também".

SERVIÇO

O álbum Bimogow é distribuido pela Harmonia Mundi, mas possível escutar três de suas faixas no site

www.myspace.com/madinandiayemusic

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