Luta pela vida

"E essa luta pela sobrevivência começa muito cedo. Seu início se dá ao começarmos a entender a própria existência"
Regina Teixeira da Costa
reginacosta@uaivip.com.br
Quando nascemos ignoramos o que somos, mas desde muito cedo lutamos pela sobrevivência. Entre os vivos não há quem não se inclua nessa luta, pois os instintos ou pulsões de vida têm força e recebem reforço dos nossos cuidadores. Há os que não sobrevivem, pois a luta pela vida significa suportar uma certa crueldade. Nos sobreviventes coexistem os opostos, as forças pela vida e pela morte. A morte sempre vence pois somos mortais, mas as forças de vida habitam em nossa psique, adiando ao máximo aquilo que será nosso temido grand finale.

E essa luta pela sobrevivência começa muito cedo. Seu início se dá ao começarmos a entender a própria existência, e que algumas coisas podem disputar o mesmo espaço que nós e os mesmos objetos podem ser desejados por outros além de nós. Nesse momento, imediatamente acreditamos que tudo que perturba nosso espaço é mal vindo. O que sou é bom, o que não faz parte do mim é mau e deve ser exterminado. Pode parecer estranho, mas é exatamente assim que começamos. Numa luta agressiva contra o que vem de fora.

Estou falando aqui do início da constituição humana. Machado de Assis, o grande escritor, este ano homenageado por ocasião do centenário de seu falecimento, ao escrever Esaú e Jacó vai muito além disso. Situa essa disputa ainda antes do nascimento. Nesse romance aborda a pendenga entre os irmãos gêmeos no ventre da mãe, dona Natividade. Essa mãe zelosa busca saber sobre o destino dos filhos nos conselhos de uma adivinha, a Cabocla, que lhe faz essa revelação intra-uterina. E completa: O que é que tem? Cá fora também se briga.

E de fato, além de disputarem o pouco espaço placentário, disputavam a mesma mãe, e passaram toda a vida a disputar o que mais encontrassem. Opositores políticos e rivais nos amores, foram obrigados pela mãe a jurar que não brigariam, e se controlavam, mas a disputa emocional era atualizada dia-a-dia.

Essa agressividade porém não se restringe a irmãos, muito menos a gêmeos. È freqüente, normal e esperada nas relações entre irmãos, amigos, amantes e todas as pessoas que são ou não de nosso relacionamento. Embora tenhamos sido educados para camuflar todas as suas manifestações, é a duras penas que o conseguimos.

É necessário muito treinamento, educação e coação para domesticar essa fabulosa fatia de nossas relações naturais. E basta observar as ocorrências nos jornais, para ver que a agressividade se apresenta invariavelmente. Crimes passionais entre amantes, crimes entre familiares por motivos financeiros, matança realizada por policiais contra civis, entre traficantes e seus devedores, entre católicos e protestantes, entre muçulmanos e judeus e tantas outras manifestações, que não deixam nenhuma dúvida sobre a agressividade humana explícita. Há formas mais sutis nas relações eróticas, nas posturas, tensões, vida social.

Sempre presenciamos, caso sejamos bons observadores das relações, a rivalidade, o ciúme, a inveja, o ódio entre os que desejam as mesmas coisas, como se tivéssemos a posse exclusiva do que está ao nosso redor ou como se quiséssemos garantir essa posse, que de fato não temos. Na esfera do amor, ela é evidente e quantas brigas ocorrem, muitas vezes porque um imagina que o outro... A simples suposição causa horror e gera tensões descabidas.

Lacan dizia que entre um homem e uma mulher as coisas nunca caminham muito bem, e existe no amor um amuro, palavra inventada por ele para dizer da impossibilidade de formar um, aspiração maior entre amantes. Trata-se sempre de um enamoródio porque mesmo para os amantes as diferenças são intoleráveis, como se pudessem ser iguais ou metade da laranja. Aqui no campo amoroso o desejo ímpar levanta a guerra.

Parece que uma parte de nós resiste ao processo de civilização, que depende para seu sucesso do sacrifício de parte da agressividade em favor de princípios superiores de colaboração da qual depende toda a construção coletiva. E quanto dessa agressividade é desviada de sua forma original e empresta sua energia para fins nobres em prol do progresso de nossa cultura.

Infelizmente, não são poucos os que falham em administrar tais forças porque faltou impedimento, faltou lei, de tal maneira que a agressividade se evidencia como naquele rapaz que manteve uma refém durante horas em Guarujá, no litoral paulista, e depois se matou em público. Outros agem de forma menos explícita, a corrupção, por exemplo, prejudica a todos de modo encoberto. E há ainda os que desejam a morte de qualquer um que se interponha em seu caminho, até por grandes bobagens.

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