Ditadura da beleza


Exigência de que atores e cantores se enquadrem em padrões estéticos é cada vez maior. Não é privilégio da China, onde a intérprete mirim emprestou sua linda voz à garota bonita
Gracie Santos
Emmanuel Pinheiro/EM/D.A Press
Sylvia Klein: "Olham para mim e pensam: 'Agora vamos ver se ela canta!'"

Há quem diga que o palco transforma qualquer mortal em beldade. Ou quem peça desculpa aos feios, como o poeta, e sentencie: “Beleza é fundamental”. Da mesma forma que recordes e medalhas, um episódio chamou a atenção na abertura dos Jogos Olímpicos na China: o das meninas Yang Peiyi e Lin Miaoke. A primeira “emprestou” a bela voz à segunda, dona de belo rosto e sorriso. Juntas, espelharam a perfeição. Descoberta a “farsa”, muitos se sentiram traídos. Mas “esconder” o “feio” não é exatamente uma invenção chinesa. É algo mais que recorrente num mundo onde impera a ditadura do belo. E isso, claro, interfere diretamente na vida de profissionais do palco. De um lado estão os “privilegiados”, com traços harmoniosos e talento. De outro, os fora-do-padrão, que vencem preconceitos com muita competência e chegam ao Olimpo, ainda que não sejam nenhuma Afrodite.

Episódio recente marcou o meio do canto lírico em Minas, mais exatamente a montagem de O escravo, de Carlos Gomes, com produção e direção de Fernando Bicudo. Sylvia Klein, que interpretava a condessa (uma francesa jovem, bela e má), conta que eles tiveram dificuldades para encontrar uma cantora que se adequasse ao papel da escrava, no libreto uma mulher encantadora, que venceria a condessa em disputa amorosa. Foram forçados a contratar alguém muito diferente da personagem. E a soprano mineira lembra que, por isso, não conseguiram criar um clima na ópera: “O público não aceitava, considerava absurdo a francesa ser trocada por uma mulher bastante gorda, que não tinha as características da escrava”, recorda Sylvia, chamando a atenção, no caso, para a importância de a montagem ser convincente.

Bonita e talentosa, a soprano mineira admite que o fato de atender os padrões estéticos possa ter ajudado em algum momento de sua trajetória, mas avisa que sofre outro tipo de preconceito: “Olham para mim e pensam: ‘Agora vamos ver se ela canta!’” O caso das meninas de Pequim é considerado absurdo por Sylvia: “Não havia um personagem sendo interpretado. Certamente, todo mundo se encantaria pela criança que cantava tão bem. Não havia uma história. Qualquer um fica bonito no palco, não é questão de beleza, mas de como você se porta”, defende. A cantora acha que a ditadura da beleza tem sido cada vez mais cruel: “É assim em toda parte do mundo, e vai ficar pior. Essa exigência é uma tortura. As pessoas estão se padronizando esteticamente, ficando sem personalidade. Parece um filme de terror”, acusa. E revela que, atualmente, andam aconselhando os cantores excessivamente gordos (que sempre fizeram história no meio) que façam regime. Foi assim com uma amiga que fez testes na Europa. “Mandaram ela emagrecer”.

Beto Novaes/EM/D.A Press
Paulo Babreck superou preconceitos contra sua estatura, de 1,60m, para ser bailarino
FORA DOS PADRÕES
Atriz do Galpão que passou temporada no Cirque du Soleil, Teuda Bara conta que ficou frustrada quando soube que a menininha linda que a havia emocionado na abertura dos Jogos Olímpicos não cantava nada. Tudo em nome da beleza, “o que já está se tornando uma espécie de escravidão”, afirma, dizendo se preocupar com a menina excluída. E conta fato recente, ocorrido com uma sobrinha, que se formou em comunicação e foi convidada para teste de repórter em uma grande emissora de TV. “Ela é bonita, escreve bem, mas não conseguiu. Soube que o problema eram as cicatrizes de queimadura que tinha na mão”. Teuda acha que no Brasil a discriminação é pior que no exterior. “Até porque, há leis garantindo certos direitos fora daqui”.

Desde jovem Teuda teve seios muito grandes e sua mãe mandava que ela os prendesse (“amarrava apertado”). Tinha também uma cicatriz feia, que lhe rendeu o apelido de “perna podre”. “Se você der bola para essas coisas, enlouquece. Chutei o pau da barraca, fiz o que queria. Sempre fui atirada, subia em mangueira, nos telhados. Aos 25 anos, fui criticada por comprar um vestido (uma sobressaia que usava com botas). Disseram que eu estava velha para aquela roupa”, recorda. Mas Teuda perseguiu seu sonho e se tornou atriz. E no seu caso, o tipo físico fora dos padrões acabou sendo motivo de convite para trabalhar fora do Brasil, no Cirque du Soleil. “Viram-me fazendo a ama em Romeu e Julieta. Queriam alguém com meu tipo, mas com certeza o preconceito está em toda parte”, afirma.

Baixinho O bailarino Paulo Buarque “Babreck” sempre enfrentou problemas por ser baixinho. “Por causa da minha altura (1,60m), matava um leão todo dia no Balé Guaíra, em Curitiba”, garante. Babreck não tem dúvidas: “Um cara como eu só venceu porque tecnicamente era muito bom”. Ele diz que tinha todas as qualidades técnicas para a dança clássica, mas se colocassem uma bailarina de sua altura e eles tivessem que fazer um pas-de-deux, ela logo ficava mais alta. Babrek acha que no Guaíra contou também com a sorte. “Naquela época, era uma companhia diversificada, tinha gente de toda altura”. Com o tempo, o bailarino, hoje professor da Fundação Clóvis Salgado, foi encontrando seu lugar: “Passei a ser solista, fazer os papéis de caráter (personagens), inclusive cômicos”. No caso das meninas chinesas, Babreck acredita que o fato ocorrido tenha a ver com o fato de a China estar tentando incorporar conceitos do Ocidente. “Talvez na rotina eles nem ajam dessa forma ainda, queriam se mostrar grande potência. A garota cantava bem e eles colocaram a bonita para aparecer. Afinal, isso não é o mesmo que se faz no Brasil com carinhas lindas em novelas medíocres?”, questiona.

Divulgação/Cirque du Soleil
Teuda Bara foi convidada para o Cirque du Soleil por seu tipo físico fora dos padrões
O CAOS


A psicanalista Inez Lemos acredita que, se prevalecer “essa ideologia do belo, será o caos, o fim do mundo”. Ainda que a beleza sempre tenha sido louvada (“tanto que há na mitologia a deusa Afrodite e a da feiúra não existe”), ela acha que vivemos um retrocesso: “Podemos dizer que a sociedade regrediu e está outra vez tentando criar uma nova raça superior”. E o que mais estaria por trás dessa sacralização da beleza? “Uma questão de mercado, econômica. Pessoas vulneráveis e fúteis vão demandar objetos de consumo. E também uma questão política. Afinal essa é uma forma moderna de exclusão”, analisa. Para Inez, “a propaganda de padrões estéticos esconde estratégia de manutenção da insatisfação do sujeito, que vai ter que comprar o que lhe dá prazer”. E o que faz com que pessoas fora dos padrões vençam no palco ou na TV? “Elas são bem resolvidas, com história de superação de conflitos internos. Alguém saudável aceita suas limitações, as supera e avança”.

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