Sob o olhar de Brás Cubas

Revolução tecnológica da comunicação gera implicações éticas e políticas sobre a questão da intimidade e do espaço privado. Informações tornadas perenes podem se voltar contra o cidadão
Virgílio Fernandes Almeida
Euler Júnior/EM/D.A Press - 30/4/08
Sala de monitoramento do programa Olho Vivo, em Belo Horizonte: os olhos gerados pela tecnologia se espalham pela cidade, gerando cenário digno de Orwell em 1984.



“A vida é uma lousa, em que o destino,
para escrever um novo caso, precisa apagar
o caso escrito. Obra de lápis e esponja.”

Machado de Assis, 1882


Tudo. Tudo pode ser filmado, gravado e fotografado. Indefinidamente registrado nas memórias eletrônicas. E mais. Tudo pode ser recuperado, relembrado, requentado, trazido de volta à luz dos interesses. Este é um traço ainda não compreendido do mundo de hoje, marcado pela confluência da natureza com algo que excede a própria natureza e a envolve de forma invisível. São as redes eletrônicas com seus bilhões de computadores e celulares, que coletivamente possibilitam novas relações entre os homens e as máquinas, entre o humano e o não-humano. A literatura abre espaço para capturarmos a dimensão das implicações e problemas desses novos tempos.

Em 2008, celebra-se a memória de Machado de Assis (1839-1908), que morreu há 100 anos. A releitura de sua obra é uma fonte de prazer, pela forma e elegância do texto, aberto a múltiplas possibilidades de leitura, dependendo do gosto e ofício do leitor. Nos romances, contos, crônicas e personagens, Machado de Assis extrai com destreza e economia o universal do cotidiano, o atemporal do dia-a-dia de sua época. “Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possível crer. Súbito deu um grande salto, estendeu os braços e a pernas, até tomar a forma de X: decifra-me ou devoro-te.” É com esse espírito do trapézio, que precisamos entender os limites e as possibilidades dos novos tempos eletrônicos, em que a privacidade individual, a intimidade pessoal e a segurança da sociedade e do Estado são definitivamente alteradas pela transição das coisas concretas, como o papel, a distância geográfica e o contato presencial, para a quase imaterialidade dos meios eletrônicos.

Está em curso uma revolução da informação, cujas implicações estamos apenas começando a perceber. Novos termos e novas situações mostram como a vida moderna vai sendo enquadrada pela arquitetura e tecnologia dos sistemas de informação. Os jornais estampam freqüentemente essas mudanças em suas manchetes: “Juiz autoriza quebra do sigilio eletrônico de banqueiro”, “Pen-drive do bicho mostra planilha com pagamentos de propina”, “Câmeras reduzem criminalidade”, “Registro eletrônico mostra gastos com cartões corporativos”, “Justiça autoriza quebra de sigilo eletrônico da conta bancária do caseiro do ministro”, “E- mails vasculhados pelos procuradores”, “Vazamento do dossiê eletrônico de gastos de ex-presidente”, “Polícia apreende computadores dos acusados”.

A vida moderna não é mais a lousa descrita por Machado de Assis, onde a esponja do tempo apaga as coisas do passado. Nada desaparece. Anotações em pedaços de papel, cadernetas de contas, cadernos de negócios, agendas, cartas, bilhetes, fotos, diários e todas as outras maneiras de registrar o cotidiano e os negócios vão sendo substituídos pelos arquivos eletrônicos dos computadores. Máquinas que tudo guardam e nada esquecem. Surge então uma indagação fundamental: como conviver com a perenidade das informações, em que nada desaparece? E aí está o novo, em que a vida moderna começa a pregar suas peças. “Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz a consciência...” observou filosoficamente o finado Brás Cubas.

MEMÓRIA ELETRÔNICA Com a perenidade da informação, chegará o tempo em que seremos todos classificados, rotulados a partir de informações inferidas de nossos gastos, nossos gostos, nossas inclinações políticas, nossas crenças religiosas, nossa vida passada. Nos EUA, um homem relatou para uma reportagem sua experiência numa clínica de reabilitação para alcoólatras e viciados em drogas. Três anos mais tarde, já recuperada, essa pessoa teve dificuldades em conseguir emprego, pois as empresas, por meio de buscas na internet, encontravam a reportagem publicada pelo jornal. Tudo está invisivelmente registrado nas memórias eletrônicas, pronto para ser garimpado, pronto para ser interpretado de acordo com o freguês.

Câmeras de vídeo vigiam centros urbanos, edifícios, shoppings, estacionamentos, aeroportos e rodoviárias. Câmeras de satélites monitoram o desmatamento da floresta amazônica, as infrações ambientais no pantanal mato-grossense e fazem o rastreamento eletrônico de gado para exportação. Polícia e Justiça monitoram conversas do crime e da corrupção. Nada escapa aos ubíquos celulares, câmeras e computadores: “E tudo isso constituía uma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre as quais tínhamos de resvalar com a tática e a maciez das cobras”, refletiu Brás Cubas em suas memórias póstumas. As redes eletrônicas ampliam dramaticamente as possibilidades de controle. “Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga”, ouviu Brás Cubas em seu delírio.

Se por um lado há a possibilidade de aumentar a segurança, reduzir a criminalidade, controlar o meio ambiente, por outro sobressaem os sinais de invasão de privacidade e controle social que a tecnologia permite. Sinais que não se restringem apenas ao Brasil nem são exclusividade de governos. Aliás, no mundo inteiro, em especial na Europa, os jornais têm noticiado escândalos envolvendo vazamento de informações eletrônicas. Na Inglaterra, funcionários da receita perderam dois discos de computador contendo bases de dados com informações pessoais e bancárias referentes a 25 milhões de ingleses.

VIGÍLIA SEM FIM A maior empresa de telecomunicações da Alemanha, controlada pelo governo, admitiu ter usado técnicas sofisticadas de computação para monitorar, identificar e entender milhares de conversas telefônicas de integrantes da direção da empresa com jornalistas. Informações referentes à devolução do Imposto de Renda de 38 milhões de cidadãos italianos foram recentemente publicadas na internet. Uma lei aprovada pelo Congresso americano permite ao governo monitorar e vigiar maciçamente conversas telefônicas e mensagens de e-mails trocadas pelos norte-americanos com o exterior.

As tentações para criar ambientes orwellianos seguem par e par com o avanço das redes eletrônicas e a evolução da tecnologia da informação. Por meio da tecnologia, a ficção de George Orwell em 1984 deixa de ser coisa de livro e cinema, para se tornar possibilidade real. “Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho”, refletiu Brás Cubas. Parafraseando Machado de Assis, poderíamos dizer alto e bom tom: Deus nos livre, leitor, de algo como o Big Brother.

Não se trata apenas de proteger a informação nestes tempos repletos de dados eletronicamente disponíveis. Trata-se de proteger a privacidade do cidadão, proteger o espaço pessoal representado pelas informações relacionadas e associadas ao indivíduo. A coleta e o uso de informações pessoais implica obrigações e responsabilidades. Tarefas para as quais ainda não existem nem mecanismos tecnológicos nem instrumentos legais devidamente apropriados.


Virgilio Fernandes Almeida é professor titular do Departamento de Ciência da Computação da UFMG.

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