por Michelle Amaral da Silva — Última modificação 25/07/2008 11:24
Modificações na Lei Rouanet podem acabar com caráter mercadológico do fomento às artes
Juliano Domingues
de São Paulo (SP)
Os meios de incentivo à produção de cultura no Brasil estão em discussão. O foco é a alteração da Lei Rouanet - mecanismo federal formulado em 1992 para cumprir essa tarefa, mas que realiza um desserviço quanto ao cumprimento da missão constitucional do Estado de garantir a todos o direito ao acesso e à produção de cultura.
A Lei Rouanet foi formulada de modo a garantir isenção fiscal para as empresas que investirem em uma determinada produção artística, seja ela na área de teatro, dança ou música.
“A lei foi idealizada para desenvolver uma indústria cultural e sempre teve um aspecto mercadológico desde o seu início, porque é fruto de um momento radicalmente neoliberal da política brasileira. A legislação deixa então na mão das empresas privadas a decisão de onde investir um dinheiro que é público”, afirma o presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Celso Frateschi.
Segundo a professora aposentada de teoria literária, da Universidade do Estado de São Paulo (USP), Iná Camargo, a Lei Rouanet é produto do capital financeiro internacional. Ela é a adaptação para o Brasil do programa cultural da Margareth Thatcher e do Ronald Reagan: a primeira coisa que fizeram foi cortar a verba pública para a arte. Trata-se de todo um processo de terceirização e de esvaziamento do Estado nas mais diversas áreas. O Brasil de maneira clara, entra nessa lógica a partir do governo Collor.
Distorções e aberrações
De acordo com o integrante do setor de cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rafael Villas Bôas, o teatro e as artes em geral podem funcionar como força produtiva de conhecimento, como elemento organizador de uma experiência social e de crítica às contradições de um sistema regido pela ordem capitalista, apontando possibilidades de transformação dessa mesma ordem.
O mesmo afirma ainda que “é direito de todo cidadão brasileiro não só o acesso, mas a condição de poder produzir cultura. Isso é uma reivindicação do Movimento Redemoinho (ver box), mas também do Movimento Sem Terra e da Via Campesina como um todo. A gente luta para que o Estado banque essas iniciativas culturais que não estão e nem poderiam estar contempladas dentro dessa lógica de mercado.”
Já a realidade ainda fala de maneira diferente. O presidente da Funarte explica que, dá maneira como a Rouanet continua formulada, temos as seguintes distorções:
1. A platéia deixa de ter importância na arrecadação dos recursos, porque a produção dá muito mais dinheiro para o espetáculo, o produtor então não se preocupa com o público e sim com quem financia o espetáculo. Você tem então um aumento brutal do número de produtos e uma diminuição de público. “Há uma deseconomia que prejudica o setor”.
2. As empresas financiam o produto que fala com o seu consumidor, daí a concentração no eixo Rio-São Paulo. Cerca de 80% dos recursos são da região Sudeste e apenas 1% do Nordeste.
3. Cerca de 3% dos captadores levam quase 50% dos recursos. Há uma concentração para os captadores porque existe uma relação direta entre o ele e empresa que já encomenda o produto que ela quer.
4. Os Estados e municípios criam um mecanismo promíscuo que define para onde vai o dinheiro. Ou seja, o Governo de São Paulo, por exemplo, pede que suas estatais banquem aquilo que o Estado quer que elas banquem.
No site do Minc consta que a Lei Rouanet movimenta cerca de um bilhão por ano. “Isso simplesmente não pode estar na mão do mercado. Você simplesmente dá uma ajuda direta aos espetáculos internacionais, por exemplo, que são favorecidos por esse mecanismo de renúncia fiscal e que já chegam ao Brasil com tudo pago”, critica Eurico Gordoneto, integrante Teatro Vila Velha, que também faz parte do Redemoinho.
“O Teatro Alfa em São Paulo foi inteiro feito com a Lei Rouanet. Outras grandes casas também se beneficiam, como o Credicard Hall. Trata-se de dinheiro público investido nessas atividades produzidas por quem já tem capital. Há todo um maquinário que vende lixo cultural como se fosse arte. Agora a produção cultural nossa, interessada em discutir temas nossos e mesmo a produção internacional relevante, fica de fora”, afirma Iná Carmargo.
As distorções são mais do que bizarras. De acordo com o coordenador da Cooperativa Paulista de Teatro e ator da Cia. do Latão, Ney Piacentini, a Funarte, em 2007, através de dois projetos, destinou R$ 10 milhões para o fomento ao teatro e à dança do país inteiro. “Só uma produção, a do Circo de Soleil, levou R$ 9 milhões e depois ainda cobrou ingressos de R$ 300. Isso foi bancado por grandes corporações e são elas que impedem que esse sistema mude. São instituições milionárias que simplesmente não precisam disso”, protesta Piacentini.
Contraponto
Em cinco anos de governo Lula, a Lei Rouanet ainda não sofreu nenhuma alteração. No dia 19 de maio, representantes do Ministério da Cultura, da Funarte, da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro e São Paulo (APTR e APTI) e do Movimento Redemoinho reuniram-se de modo a negociar a continuação de uma lei que se utilize dos mecanismos de renúncia fiscal ou a implantação de um outro mecanismo que crie um fundo estatal para o fomento a cultura.
De acordo com Tânia Farias, do grupo de teatro Oi Nóis (RS), que integra o Redemoinho, a discussão com o Ministério e a Funarte gira em torno das duas leis até então apresentadas no Senado.
A primeira é a lei apresentada pela APTR e pela APTI que ainda mantém um esquema de incentivo baseado em renúncia fiscal, já a segunda é a lei apresentada pelo Redemoinho, que parte de um financiamento direto do governo. “Esperávamos que o Ministério apresentasse uma proposta de lei [já nomeada de Lei Geral das Artes], mas isso não aconteceu. No entanto, parece que o Minc tende a aceitar algo mais em torno do que foi proposto por nós”, afirma Tânia Freitas.
A reportagem tentou entrar em contato com o Minc. No entanto, a assessoria de imprensa do Ministério informa que ainda não tem autorização para informar que medidas estão sendo formuladas para alteração da Rouanet.
Redemoinho e Cooperativa Paulista defendem que a proposta do governo contemple as propostas apresentadas por eles no projeto de lei “Programa de Fomento ao Teatro Brasileiro”. O PL propõe um valor específico dos cofres públicos destinados para cada região brasileira. Essa verba garantiria para os grupos a condição de pesquisa com continuidade, uma sede e condição de abertura para formação de público e novos atores.
“Essa proposta é mais abrangente porque ela olha para o Brasil inteiro e não apenas para o eixo Rio-São Paulo e dá espaço para as manifestações regionais e outras que nunca seriam contempladas com a Rouanet”, afirma Eurico Gordoneto, do Teatro Vila Velha.
A proposta de criação de um fundo público para as artes, ao que tudo indica, é apoiada também pela Funarte. “Nós precisamos de um fundo que mude esse paradigma e que seja uma alternativa à Rouanet, para que a gente possa garantir a Constituição que determina o direito público de acesso à cultura”, completa Gordoneto.
O Movimento Redemoinho
Reunindo cerca de 70 grupos de teatro em 11 Estados, o Movimento Redemoinho possui como pauta de reivindicação o direito igual ao acesso a verbas para a manutenção e desenvolvimento de manifestações artísticas, tanto nas regiões centrais, quanto interioranas brasileiras. Trata-se de um movimento pela libertação e elevação cultural.
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